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por Raimundo Lira |
Entrevista
Entrevista – Milton Coelho da Graça
Aos 75 anos, Milton Coelho da Graça, membro do Conselho Deliberativo da ABI, acumula no currículo experiência invejável em grandes publicações brasileiras
Foto: Divulgação Milton das Graças, foi editor-chefe de O Globo, Diário Manhã, e outros jornais, inclusive os clandestinos Notícias Censuradas e ResistênciaRodrigo Caixeta
13/01/2006
ABI Online — Trace um breve perfil do senhor.
Milton Coelho da Graça — Carioca da Gamboa (nascido na seção de indigentes da Pró-Matre), 75 anos, casado, quatro filhos.
ABI Online — Sua formação inclui Ciências Econômicas e Direito e até uma pós-graduação em Administração de Empresas na Suíça. O senhor exerceu alguma dessas atividades antes de se tornar jornalista? Em caso afirmativo, como foi a experiência? Como surgiu o interesse pelo jornalismo?
Milton — Fui selecionado num concurso da General Electric entre formandos de Economia e tinha boas chances de ir para o seu Centro de Altos Estudos em Albany, Nova York. Mas, na hora do almoço, participei de um comício da UNE contra Roberto Campos, bem ali na esquina das ruas Sete de Setembro e Quitanda. Minha foto, preso, saiu na primeira página do Globo e eu nem pude entrar mais na empresa. No ano seguinte, quando estava me formando em Direito, batalhei quase um mês para soltar três vagabundos que tinham sido presos em flagrante botando água no leite. Consegui um habeas corpus e os três se mandaram sem me pagar. Como dizia aquela versão de “Caminito” que foi muito cantada no carnaval, fiquei “no oceano da vida como embarcação perdida”, até que o Maurício Azêdo (hoje Presidente da ABI) me levou para ser redator da coluna social do Diário Carioca. E, durante 50 anos, só saí de uma redação para a cadeia.
ABI Online — O senhor passou por grandes jornais, como o já citado Diário Carioca e a Última Hora, hoje extintos. A que acha que se deve o desaparecimento desses veículos e a conseqüente diminuição do número de periódicos?
Milton — No caso de UH, o jornal foi destruído pela ditadura militar. O Diário Carioca morreu porque o dono não entendeu as mudanças no mundo, no País e na indústria da informação — explicação que vale também para a parte final da pergunta. Mas tenho dúvidas sobre o que você chama de “diminuição do número de periódicos”. Temos hoje sete diários no Rio (Globo, Extra, O Dia, O Povo, Jornal dos Sports, Lance! e Meia Hora), mais uns três ou quatro na região metropolitana. E é preciso levar em conta os jornais de bairro (existem dezenas) ou de grupos políticos e sociais (Hora do Povo, Inverta, Jornal dos Aposentados e muitos outros) que não são diários, mas pesam na formação da opinião pública.
ABI Online — Fale um pouco sobre sua passagem pelos principais veículos do País.
Milton — Por ordem cronológica foram Diário Carioca (três vezes); Hoje; Shopping News; TV Rio; Última Hora (Rio); Última Hora (Recife); Diário da Noite e Jornal do Commercio (ambos de Pernambuco); Jóia, revista feminina da Bloch; sucursal Rio da Editora Abril, nas revistas Realidade, Quatro Rodas, Intervalo, Placar, Playboy e Documento Brasil; Fato Novo, Resistência e Notícias Censuradas, jornais clandestinos; Tênis Esporte; Vela & Motor; História do Rock; Arte Hoje; O Globo; Gazeta Mercantil; IstoÉ; TV Corcovado (comprada pela Record); Diário da Manhã (Goiânia); Diário da Amazônia; Grupo Gazeta de Alagoas (jornal, TV e rádios); Jornal do Commercio; Jornal dos Sports; e site Comunique-se.
ABI Online — Quais os momentos mais marcantes dessa trajetória?
Milton — Última Hora, Editora Abril, Gazeta Mercantil, IstoÉ e O Globo marcaram as “viradas” e aprendizagens mais importantes de minha vida profissional.
ABI Online — Muitos jornalistas dizem que bom mesmo é ser repórter. Após ter acumulado tantas funções, como redator, chefe de reportagem e editor, o que mais o atrai no jornalismo?
Milton — Melhor do que ser repórter é ser pauteiro.
ABI Online — O que o senhor acredita que faz alguém um bom repórter?
Milton — Compulsão pelo conhecimento, compromisso ético com o bem público, excelente nível de conhecimento de nossa língua e bom nível de cultura geral (ou especializada).
ABI Online — Para ficar só em títulos da Abril: Quatro Rodas, Placar, Playboy… Como é a experiência de ter trabalhado em editorias tão diferentes? De que forma isso se reflete em sua carreira?
Milton — Eu não sou um “especialista”, sempre gostei de jogar nas 11 e nunca fui disciplinado na aprendizagem. Isso foi determinante na minha carreira “errática”.
ABI Online — Voltando ao tempo dos jornais clandestinos, o senhor chegou a ser preso e torturado. Como foi o período da ditadura, olhando hoje em retrospectiva?
Milton — Foram 20 anos de um projeto nacional equivocado, de agravamento das desigualdades, de desrespeito à Declaração dos Direitos Humanos e — pior — de uma herança institucional que ainda não conseguimos superar. Uma herança que atrasou e continua atrasando a formação de jovens lideranças; que deforma, com o absurdo “pacote de abril”, o Parlamento, a Federação e a representação democrática da cidadania; e mantém na cultura política a figura do “baixo clero” — a maior bancada tanto no Senado como na Câmara e em quase todas as assembléias estaduais —, parlamentares que apóiam qualquer Governo em troca de vantagens pessoais.
ABI Online — Recentemente, a Secretaria de Estado de Educação do Rio (SEE) distribuiu entre os 150 mil alunos da rede pública de ensino médio uma cartilha — produzida pelo senhor e intitulada “Uma visão da história para jovens” —, com uma biografia do jornalista Vladimir Herzog. Qual era sua relação com ele?
Milton — Companheiro, amigo e admirador.
ABI Online — Como foi a experiência de ser correspondente internacional em Londres e Nova York?
Milton — Para quem começou na enfermaria de indigentes da Pró-Matre e ficou órfão aos 3 anos, sobreviver tem sido uma experiência notável, sempre enriquecida pelo maior prazer no amor e no trabalho. Que mais posso dizer sobre a inclusão de todos os estados do Brasil, Suíça, Estados Unidos, Grã-Bretanha e outros 45 países nessa experiência?
ABI Online — O senhor foi Diretor de Jornalismo de jornal, rádio e TV no Grupo Gazeta de Alagoas. Considera-se um profissional multimídia?
Milton — Sim, embora não tenha tido no rádio a oportunidade que gostaria. Acompanho com interesse — e, confesso, inveja — o excelente trabalho dos companheiros da CBN e da BandNews
ABI Online — Hoje, a internet configura-se como uma importante mídia jornalística, com coberturas em tempo real. O senhor é editor e colunista do Comunique-se, ou seja, já está familiarizado com esse ambiente. Como o avalia? Acredita que a internet pode acabar com a imprensa? Qual o caminho a ser seguido?
Milton — Fui editor, mas hoje sou apenas colunista e me sinto em casa na internet. Hoje — e, nessa área, é vital manter-se aberto às possibilidades que estão sempre surgindo — acho que jornal impresso e online tendem a convergir, não a colidir.
ABI Online — O senhor também criou recentemente um blog. Com que freqüência o atualiza e quais as temáticas principais abordadas? Milton — Estou numa fase de dúvida sobre o presente e o futuro do blog.
ABI Online — Embora o Presidente Lula acuse a imprensa de irresponsável, não param de surgir denúncias de corrupção em todo o País. Como o senhor analisa a cobertura da mídia nesse cenário de crise política?
Milton — Corretíssima, com os equívocos, exageros e deficiências próprios de uma imprensa democrática e livre. No caso brasileiro, tudo isso agravado pelas dificuldades econômicas e o esforço de governos, grandes empresas e políticos (em todos os níveis) para suborná-la, enganá-la e/ou submetê-la.
ABI Online — Concorda com alguns articulistas, que dizem que a imprensa é a memória da cidadania?
Milton — Concordo, ressalvando que ela não é a “única” memória.
ABI Online — Defina o que é ser um membro da “esquerda possível”.
Milton — Possível qualquer esquerda é, desde que respeite as normas da convivência com outras correntes de pensamento. Mas a condição básica para o sucesso de qualquer de esquerda é que ela tenha sua inspiração e suas propostas na realidade e no conhecimento, não em visões éticas, desejos, utopias — tudo aquilo que é domínio da religião, não da política. Como nos disse Geraldo Vandré em enigmática canção do final da década de 60, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. É um chamado à militância, mas os jovens interpretaram a palavra “sabe” como “quer”. E não adianta só querer, é preciso saber.
ABI Online — Recentemente, em sua coluna no Comunique-se, o senhor criticou o processo seletivo do jornal O Globo, que, apesar de “um severo sistema de recrutamento de novos jornalistas”, é publicado com freqüentes erros de português em todas as editorias e até mesmo em colunas e títulos. Na sua opinião, qual o nível de qualidade dos jornais brasileiros atualmente?
Milton — O nível médio dos nossos jornais se equipara ao das melhores imprensas do mundo — e não apenas dos grandes, também entre médios e pequenos, como demonstra o mensário Já, de Porto Alegre, e muitos outros Brasil afora. Mas existem sérias lacunas na formação educacional, pouca gente para muito trabalho nas redações e, infelizmente, muitos chefes que fogem de sua principal responsabilidade: a busca incansável da excelência. Como pode sair no “Jornal nacional” a informação de que a Turquia não está na Ásia? Ou como podem sair publicados os mesmos erros gramaticais sem que os autores sejam chamados para “uma aulinha particular” com o editor-chefe?
ABI Online — O senhor também escreveu nesse mesmo artigo que as empresas adotam cada vez mais estratégias e organogramas, elaborados por consultores ou administradores, sempre com uma tônica comum: reduzir custos de pessoal, mesmo com queda na qualidade editorial. Como o senhor avalia essa tendência?
Milton — Nossos jornais — pelo menos a grande maioria — foram criados e dirigidos durante décadas por jornalistas empreendedores, não especialistas em administração. E muitos de seus herdeiros não são nem uma coisa, nem outra. A primeira e única empresa que teve a preocupação de, já nos anos 70, mandar editores para estudar Administração nos Estados Unidos ou na Europa foi a Editora Abril. Quando os herdeiros dos fundadores começaram a assumir as empresas de mídia, optaram por contratar consultorias internacionais, fortes em gestão financeira e administrativa, mas sem know-how específico na área de comunicação. Navarra — imaginem! — passou a ser a Meca da nova geração de comandantes da imprensa. O Diário de São Paulo é um nítido exemplo dessa importação inadequada.
ABI Online — Sobre a prisão de Judith Miller, do New York Times, por se recusar a revelar a identidade de sua fonte, o senhor escreveu um artigo levantando uma série de questões como a confidencialidade da informação em off e a relação de jornalistas e outros cidadãos a respeito de cumprimento da lei. Agora repito um dos questionamentos feito aos leitores: a liberdade de imprensa pode ter exceções?
Milton — Vou tomar dos nossos procuradores e juízes uma definição que eles repetem sem cessar e que ninguém contesta: nenhum direito é absoluto. Acho que a ABI, a ANJ (Associação Nacional de Jornais) e outras organizações preocupadas com o futuro da imprensa deveriam manter um fórum permanente de discussão sobre este assunto.
ABI Online — O senhor também dá aulas. O que o levou a ingressar no mundo acadêmico?
Milton — Primeiro, para melhorar minha renda, porque depois de pagar INSS durante décadas sobre 20 salários mínimos, recebo pouco mais de seis. Segundo, porque quero compartilhar minha experiência com jovens dispostos a aproveitá-la. Terceiro, porque estou convencido de que a batalha fundamental na espécie humana se trava entre a busca do conhecimento e a ignorância.
ABI Online — Embora não tenha formação superior em Jornalismo, profissão que exerceu a maior parte da vida, o senhor concorda com a exigência do diploma? Por quê?
Milton — A prática do jornalismo exige educação de nível superior. Mas a juíza nos alertou: todos os cidadãos têm a garantia constitucional da liberdade de expressão. Não podemos nos confortar com privilégios educacionais ou corporativos. Temos de lutar para que o preceito constitucional seja efetivamente respeitado.
ABI Online — Na atual conjuntura do País, acha possível viver do jornalismo?
Milton — Acho. Mal, é claro, mas marceneiros e cortadores de cana também têm dificuldade para ganhar um salário mais justo. E tudo indica que a vida do jornalista só ganhará em qualidade se estivermos ao lado de marceneiros e cortadores de cana na luta contra a desigualdade.
Aos 75 anos, Milton Coelho da Graça, membro do Conselho Deliberativo da ABI, acumula no currículo experiência invejável em grandes publicações brasileiras. Embora não tenha formação em Jornalismo, ele sabe bem quais são as habilidades que formam um bom repórter. Entre as mídias, frustrou-se com o rádio, acredita na convergência entre o impresso e o online, julga correta a cobertura da crise que atinge o País e diz que o nível médio dos jornais nacionais se equipara ao dos melhores do mundo. Milton Coelho da Graça, nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 30 de novembro de 1930. Foi editor-chefe de O Globo, Diário Manhã (Goiânia - Goiás) e outros jornais, inclusive os clandestinos Notícias Censuradas e Resistência. Trabalhou também para as revistas Realidade, IstoÉ, Quatro Rodas, Placar e Intervalo, além de para o portal de internet Comunique-se e foi secretário de comunicação do Governo do Distrito Federal (1994/1998).