Desembargadores da Justiça de Goiás descredibilizaram uma mulher que entrou com uma ação contra o pastor Davi Passamani, fundador da igreja A Casa, por assédio moral e sexual. Na fala realizada durante uma análise do caso, um dos magistrados chegou a chamar a vítima de sonsa e outro disse que temas de assédio moral, sexual e racismo se tornaram “modismo”. “Essa moça aí, ela mesmo falou que era sonsa. Ela não foi muito sonsa? No século que a gente está”, questionou o desembargador Silvânio. “Hoje eu particulamente eu tenho uma preocupação muito séria com o tal do assédio moral como gênero, sexual como espécie do gênero e racismo. Então esses temas viraram um modismo”, completou o desembargador Jeová, em seguida. As falas foram realizadas na última terça-feira (19) durante uma sessão da 6ª Câmara Cível. Em nota, o desembargador Silvânio Divino, justificou que teria feito questionamentos na busca de amadurecer e compreender o caso em questão. Segundo ele, a abordagem realizada, “ao levantar hipóteses e situações hipotéticas, tem como objetivo explorar a verdade real do processo, garantindo que nenhum aspecto seja negligenciado de ambos os lados”. Já o desembargador Jeová Sardinha disse que reconhece a seriedade e a “prevalência do machismo e do racismo em nossa sociedade”, e afirmou que a intenção, naquele momento, era ressaltar “a importância de uma análise cuidadosa e contextual de cada caso, para evitar julgamentos precipitados e erros”. A defesa da vítima afirma que os casos que envolvem a dignidade sexual precisam ser julgados a partir dos fatos e provas que fazem parte do processo e não com julgamentos morais, como, segundo a defesa, ocorreu. Apesar disso, informa que na sessão desta terça-feira (26/3) o erro foi corrigido. Em nota, a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB, Fabíola Ariadne, afirma que existe um protocolo para que as vítimas de assédio não sejam revitimizadas nos julgamentos. A reportagem não conseguiu localizar a defesa do pastor Davi Passamani para um posicionamento até a última atualização deste texto.
Sessão do TJGO
Na sessão, os desembargadores analisavam o caso de assédio sexual envolvendo o pastor Davi Passamani. O desembargador Silvânio Alvarenga, que questionou se a vítima não estaria sendo "sonsa", chegou a sugerir que esse tipo de processo estaria prejudicando a interação entre os homens e as mulheres. Em sua fala, ele disse que os homens estariam receosos de se relacionar com mulheres, com medo de serem processados por assédio. Na ocasião, o desembargador solicitou mais tempo para análise do pedido da vítima. A nova sessão para análise do caso estava marcada para esta terça-feira (26/3). Em seguida, ainda na sessão, o desembargador Jeová Sardinha demonstrou certa preocupação quanto aos temas discutidos, pontuando que casos de assédio e até racismo teriam virado "modismo". "Não é à toa, não é brincadeira, que estão sendo usados e explorados com muita frequência”, pontuou Sardinha. Na sessão, os desembargadores chegaram a questionar se a vítima e o namorado não teriam planejado uma situação com o objetivo final de entrar com uma ação contra o pastor.
Denúncia contra Davi Passamani
O caso que era analisado pelos desembargadores é uma denúncia de assédio sexual e assédio moral contra o pastor Davi Passamani. A denúncia feita pela vítima contra o pastor foi arquivada pelo Ministério Público por falta de provas, em 2020. Com isso, no mesmo ano a defesa entrou com uma ação cível para reparação de danos morais.
Histórico de crimes sexuais
Essa não é a primeira vez que Passamani é denunciado por importunação sexual. Em março de 2020, o g1 noticiou que uma veterinária, que frequentava a igreja do pastor, o denunciou dizendo que ele perguntou sobre a vida sexual dela, disse que queria sentir seu beijo e que teve um sonho com ela. No mês seguinte, uma segunda mulher procurou a polícia para também denunciar o pastor pelo mesmo crime. Com a repercussão negativa, o pastor chegou a gravar um vídeo negando o crime e pedindo desculpas à família e aos fiéis. Na época, a Igreja Casa também se pronunciou, dizendo que estava apurando o caso e que Passamani estava afastado de funções "há semanas" para "tratamento médico e cuidados em família". Apesar disso, a Justiça de Goiás determinou o arquivamento do inquérito policial. A decisão foi do juiz Luís Henrique Lins Galvão de Lima, atendendo a requerimento do Ministério Público. Wilson Carlos de Almeida Júnior, advogado do pastor, afirmou na época que as provas apresentadas pelas duas vítimas citadas não tinham "relevância para fins penais". Mas, em junho de 2020, o Ministério Público (MP-GO) denunciou o pastor por outro crime de importunação sexual. Desta vez, a denúncia referia-se ao caso de uma vítima de janeiro de 2019. O processo tramita em sigilo e, por isso, o g1 não conseguiu atualizações sobre ele.
Nota do desembargador Silvânio Divino de Alvarenga:
No contexto do julgamento complexo em andamento, que atualmente está sob minha análise após ter pedido vista dos autos na sessão relatada, esclareço que fiz questionamentos na busca do amadurecimento e da compreensão integral do caso em questão. Minha abordagem, ao levantar hipóteses e situações hipotéticas, tem como objetivo explorar a verdade real do processo, garantindo que nenhum aspecto seja negligenciado de ambos os lados.
Nota do desembargador Jeová Sardinha na íntegra:
Antes de tudo quero falar que reconheço a seriedade e a prevalência do machismo e do racismo em nossa sociedade. Minha intenção, naquele contexto, ao abordar temas delicados como assédio e racismo, foi enfatizar a importância de uma análise cuidadosa e contextual de cada caso, para evitar julgamentos precipitados e erros. Entendo que a escolha de minhas palavras ditas no calor de voto verbal, até com erros de vernáculo, não dizem respeito ao caso concreto.
Nota da defesa da vítima na íntegra:
O julgamento de casos que envolvem a dignidade sexual precisa ser feito a partir dos fatos e provas que fazem parte do processo. Infelizmente, nesse caso, tivemos até aqui, um verdadeiro julgamento moral, onde colocaram a vítima na posição de ter contribuído para a ocorrência da violência. Isso é absurdo. A discriminação de mulheres é incompatível com os princípios constitucionais e tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário. Desqualificar a vítima e enaltecer as falas do violentador é uma prática do senso comum. Contudo, os desembargadores não fazem parte do senso comum. Pelo contrário. Eles têm o dever de serem imparciais e julgarem o caso conforme as provas do processo, afastando vieses ceticistas ou crenças demasiadas. As falas dos desembargadores expõe a sistemática do machismo estrutural ao qual estamos sujeitas. Escancara a realidade de um país que registra um caso de estupro a cada 8 minutos. Demonstra o quanto nós mulheres estamos sujeitas a uma sequências de violências. Somos violadas em nossa dignidade sexual, somos violadas quando denunciamos nossos violentadores, somos violadas quando o mais alto grau de justiça do Estado é conivente com o contexto de degradação da nossa imagem. Ou seja, não há abrigo! E falas como essas deixa claro que ainda precisamos avançar muito para termos o mínimo. Ainda estamos expostas ao risco da condenação moral de homens fortalecidos por um sistema lucrativo de impunidades. Todos os casos de violência contra a dignidade sexual das mulheres se iniciam num contexto de assédio moral. E não há como negar. Na sessão de hoje, depois de muitos debates, inclusive da mídia, o Desembargador Silvanio refluiu seu voto, e deferiu o pedido da vítima. Embora a ofensa a nós mulheres, dentro do contexto geral da fala, já tenha acontecido, o voto de deferimento do pedido do Des. Silvanio demonstra que numa análise equivocada e desassociada das provas do processo tanto a juíza de primeiro grau, quanto a relatora do processo, erraram. Portanto, seu voto corrigiu tal erro e se fez, finalmente, justiça à vítima.
Nota da Comissão da Mulher Advogada da OAB na íntegra:
Os julgadores tem que se atentar ao que preconiza o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que é de observância obrigatória em todos os tribunais, desde março de 2023. Esse protocolo traz uma série de orientações para evitar a reprodução de preconceitos e estereótipos no Judiciário, inclusive nos casos de assédio. Muita mulheres deixam de procurar a justiça, justamente por medo de serem revitimizadas, de se verem julgadas como vítimas em detrimento de seus algozes. O protocolo vem justamente evitar isso, ele é explícito ao dispor, por exemplo, que é estereótipo de gênero supervalorizar o comportamento da vítima antes do momento da violência, influenciado pela ideia preconcebida de que cabe às mulheres recato e decência. Há uma pergunta reflexiva prevista no protocolo, que caberia ser feita no caso em concreto: Posso estar dando peso a um evento que só parece importar por ideias préconcebidas que permeiam minha visão de mundo? Ou: Minhas experiências pessoais podem estar influenciando a minha apreciação dos fatos?
O Protocolo do CNJ foi um avanço para as mulheres dentro do Judiciário e deve ser aplicado, principalmente em casos de assédio e outros crimes sexuais.