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A Reconstrução Da Política Externa Brasileira

A Constituição determina que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais em princípios"

Foto: Divulgação
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Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores

09 maio, 2020

Brasíl - Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que exercemos altas responsabilidades na esfera das relações internacionais em diversos governos da Novidade República, manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela atual política externa dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no Cláusula 4º da Constituição de 1988. Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I- independência pátrio;

II- prevalência dos direitos humanos;

III- autodeterminação dos povos;

IV- não-intervenção; V- paridade entre os Estados; VI- resguardo da sossego; VII- solução pacífica dos conflitos;

VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X- licença de asilo político.

“Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência pátrio com a subordinação a um governo estrangeiro das quais confessado programa político é a promoção do seu interesse supra de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara coligado desse país, assumindo uma vez que própria uma agenda que prenúncio compelir o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e reciprocamente interesse. Afasta-se, demais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em mercê de nossos interesses. Outros exemplos de incoerência com os dispositivos da Constituição consistem no escora a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela emprego de embargo unilateral em desrespeito às normas do recta internacional, à paridade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Juízo de Segurança da ONU; a aprovação solene de assassínio político e o voto contra resoluções no Juízo de Direitos Humanos em Genebra de pena de violação desses direitos; a resguardo da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões uma vez que a discriminação por motivo de raça e de gênero. Além de transgredir a Constituição Federalista, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação, uma vez que o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos. Admirado na superfície ambiental, desde a Rio-92, uma vez que líder incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece agora uma vez que prenúncio a si mesmo e aos demais na devastação da Amazônia e no agravamento do aquecimento global.

A diplomacia brasileira, reconhecida uma vez que força de moderação e estabilidade a serviço da construção de consensos, converteu-se em coadjuvante subalterna do mais invasivo unilateralismo.

Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a estribar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais.

Abrimos mão da capacidade de tutorar nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao sentenciar por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasílio, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem.

Na Europa ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros relevantes em todos os domínios uma vez que França e Alemanha. A anti-diplomacia atual afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da agenda econômica do governo.

A gravíssima crise de saúde da Covid-19 revelou a irrelevância do Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter chegada a produtos e equipamentos médico-hospitalares.

O sectarismo dos ataques inexplicáveis à China e à Organização Mundial de Saúde, somado ao desrespeito à ciência e a insensibilidade às vidas humanas demonstradas pelo presidente da República, tornaram o governo objeto de vaia e repulsa internacional.

Criaram, ao mesmo tempo, obstáculos aos esforços dos governadores para importar produtos desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de brasileiros.

O resgate da política exterior do Brasil exige o retorno à obediência aos princípios constitucionais, à racionalidade, ao pragmatismo, ao tino de estabilidade, moderação e realismo construtivo.

Nessa reconstrução, é preciso que o Judiciário, guardião da Constituição, e o Congresso Pátrio, representante da vontade do povo, cumpram o papel que lhes cabe no controle da constitucionalidade das ações diplomáticas.

A término de corresponder aos anseios do nosso povo e corresponder às necessidades reais do Brasil, a política externa precisa racontar com espaçoso respaldo na opinião pública, e a colaboração na sua concepção de todos os setores da sociedade.

Requer também o engajamento do nosso corpo de diplomatas: uma política de Estado e não uma ação facciosa voltada para excitar os ânimos e exacerbar os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária.

Nossa solidariedade e disposto escora aos diplomatas humilhados e constrangidos por posições que se chocam com as melhores tradições do Itamaraty.

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no núcleo da ação diplomática a resguardo da independência, soberania, da distinção e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, uma vez que a solidariedade e a procura do diálogo, que a diplomacia ajudou a edificar uma vez que patrimônio e motivo de orgulho do povo brasílio.

Autores:  Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores; Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra, ex-ministros das Relações Exteriores; Rubens Ricupero, ex-ministro da Quinta, do Meio Envolvente e ex-embaixador do Brasil em Washington; e Hussein Kalout, ex-secretário próprio de Assuntos Estratégicos da Presidência.