p/Chico Otavio e Vera Araújo
Rio de Janeiro (RJ) - À espera do julgamento da federalização do caso Marielle Franco, marcado para o próximo dia 31 no Superior Tribunal de Justiça (STJ), os responsáveis pela investigação evitam comentar a tese, que ganha corpo entre eles, sobre a motivação do crime. Sem abandonar outras linhas de apuração, policiais e promotores acreditam cada vez mais que o assassinato da vereadora do PSOL e do motorista Anderson Gomes, que completou dois anos (14/3) foi obra de um "lobo solitário" — nesse caso, o ex-sargento da PM Ronnie Lessa. Preso desde março de 2019, o suspeito de executar o homicídio também seria o autor intelectual da ação, movida apenas por ódio. Expressão surgida na esteira dos ataques terroristas do Estado Islâmico a países ocidentais, "lobo solitário" é o criminoso que prepara e executa ações violentas à margem de qualquer estrutura de comando, embora possa ser influenciado por ideologia ou crença extremista. Uma das principais linhas de investigação sobre o planejamento do crime aponta esse perfil em Lessa. A suspeita é alimentada pela série de pesquisas que o ex-PM fez no Google, onde procurava informações sobre ativistas de esquerda focados na defesa dos direitos humanos, especialmente Marielle e o deputado federal Marcelo Freixo, também do PSOL.
Tese contestada
A quebra de sigilo dos dados obtidos na internet por Lessa e Élcio de Queiroz, que foi expulso da PM e é acusado de dirigir o carro usado no crime, ocorreu a pedido do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio. O juiz Gustavo Kalil, do 4º Tribunal de Júri, onde tramita o processo sobre o duplo homicídio, autorizou o acesso às informações dos suspeitos. A investigação continua, mas agentes da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) e promotores do Gaeco terão de enfrentar, no STJ, as dúvidas sobre a capacidade de chegarem à autoria intelectual do assassinato de Marielle e Anderson. No ano passado, ao ajuizar o pedido de federalização do caso, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, alegou que a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio não conseguiram descobrir a motivação do duplo homicídio. Ela destacou que um "eventual fracasso da persecução criminal do mandante importaria a responsabilização internacional do Estado brasileiro". A tese do "lobo solitário" encontra resistência por parte do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) e da arquiteta MônicaBenício, viúva de Marielle, que dizem não aceitar a hipótese de o crime ter sido praticado sem um mandante. Mas um dos principais responsáveis pela investigação disse que, se o Gaeco e a DHC identificarem o suposto ódio de Lessa como única motivação para o ataque, críticas ou desconfianças não impedirão a conclusão do inquérito. A hipótese é defendida por investigadores desde março do ano passado, quando Lessa e Queiroz foram presos. Na denúncia contra os dois acusados, promotores sustentaram que "é inconteste que Marielle foi sumariamente executada em razão da atuação política na defesa das causas que defendia", acrescentando que "a barbárie praticada na noite de 14 de março de 2018 foi um golpe ao Estado Democrático de Direito".
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Na época, investigadores resolveram separar a execução e o eventual mando do crime em inquéritos distintos. Em relação à execução, o processo está em andamento no 4º Tribunal do Júri, com réus já pronunciados e previsão de julgamento para o segundo semestre deste ano. Na busca do mando, a investigação segue em andamento, a cargo da DHC e do Gaeco. Para obter da Justiça a ordem de prisão contra Lessa e Queiroz, eles alegaram que "o crime foi praticado por motivo torpe, interligado a abjeta repulsa e reação à atuação política da mesma (Marielle) em defesa de suas causas". Lessa, de acordo com o relatório final sobre a execução, levantou informações sobre Freixo e outras figuras públicas ligadas a movimentos de direitos humanos antes de pesquisar a vida de Marielle na internet. Queiroz teria feito o mesmo: segundo a investigação, ele acessou perfis da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) e do ex-parlamentar Jean Wyllys (PSOL) no Facebook.
Dia de homenagens
Manifestações que marcariam hoje os dois anos do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes foram canceladas por conta da pandemia do coronavírus. No entanto, os organizadores planejaram uma nova forma de homenagem: eles pedem que sejam pendurados lenços, panos, faixas ou girassois em janelas, varandas, lajes e terraços. A ideia é que os dois sejam lembrados em 731 locais espalhados pelo mundo, mesma quantidade de dias sem respostas sobre a motivação do crime. A mobilização foi batizada de "Amanhecer por Marielle e Anderson". Também é esperado pelos organizadores uma grande número de compartilhamentos da hashtag #JustiçaPorMarielleEAnderson nas redes sociais. Em um vídeo divulgado no fim da noite de quinta-feira, a família de Marielle comunicou o cancelamento das manifestações, visando ao bem-estar coletivo. A irmã dela, Anielle Franco, disse que foi uma decisão difícil, mas necessária. Na madrugada de 14/3, Anielle publicou em sua conta no Twitter uma mensagem direcionada a Marielle. No texto, ela falou de “uma saudade que dói a alma, arrasta lágrimas e faz o corpo todo tremer de indignação”. Ela ainda destacou a criação do instituto que leva o nome da irmã e agradeceu o apoio que a família tem recebido.
Fonte: O Globo