Formada em Administração de Empresas e fundadora da Escola do Mecânico, a paulista Sandra Nalli passou boa parte de seus 41 anos em meio a homens. Aos 14, ela iniciava em Moji das Cruzes, sua cidade natal, como Jovem Aprendiz no centro de uma grande rede automotiva. O primeiro passo de uma trajetória de sucesso reservada a poucas mulheres: foi assistente administrativa, vendedora de peças e enfrentou resistência para se enveredar pela oportunidade de assumir a função de chefe de oficina, uma espécie de líder dos mecânicos. "Lugar de homem" para muitos, mas não para Nalli, que superou preconceito e outro tanto de assédio, moral e sexual. "Lembro que quando cheguei na sala de treinamento, o instrutor disse assim: "Moça, você está na sala errada, o treinamento para assistente administrativa é na sala ao lado". E eu: "Não, estou na sala certa, estou buscando desenvolvimento". Sofri pouco assédio sexual, eu diria. Foi mais assédio moral mesmo, piadinhas. O grande desafio para mim foi o preconceito. Os clientes tinham dificuldade em aceitar um mulher baixinha, loirinha, mexendo com mecânica, no carro deles", conta Nalli, que fez questão de aprender tudo sobre mecânica, sempre com muita resiliência. - Fui me aprofundando, me sentia na obrigação, na época, de absorver mais conhecimento que os homens, porque qualquer coisa que eu ouvisse eu saberia dar uma resposta. Meu medo de errar qualquer diagnóstico automotivo era bem maior que o dos meninos. Se eu errasse, aí mesmo que eles diriam que mulher não tem competência para isso, que alii nao é lugar de mulher - diz. Sandra Nalli conquistou o respeito pelo que lutou. Virou gerente da empresa, se mudou para Campinas e, anos depois, em 2011, fundou a Escola do Mecânico, uma rede de cursos de mecânica acessíveis à população, e que prega a equidade e o respeito entre gêneros. Mas se em um ambiente absolutamente masculino e onde a cultura do machismo era a ordem, ela se lembra de poucos episódios "graves" de assédio sexual, é porque contou com uma empresa com ouvidoria forte, com escuta aberta às queixas dos funcionários e que "inibia" a conduta desrespeitosa dentro do seu ambiente de trabalho. Mas o mesmo respeito não veio dos clientes. Era uma piada maliciosa ali, outra acolá, cantadas e situações desconfortáveis quando Nalli dirigia o carro com o cliente ao lado para fazer o teste rotineiro do funcionamento do veículo. Ela evitava roupas apertadas ao corpo, escondia-se em macacões largos com cortes masculinos - o que havia na época.
'Ouvia umas cantadas sem graça'
"Eu sempre saía pela tangente e migrava para outro assunto. Embora o mercado automotivo seja altamente preconceituoso em relação à mulher, tive a chance de trabalhar numa empresa que tinha uma ouvidoria atuante, isso intimidava o assédio. Já por parte de alguns clientes, ouvia umas cantadas sem graça, desnecessárias. Mas meu desejo de seguir na carreira e desbravar este setor foi maior que qualquer assédio que eu recebi", diz a empresária, que ressalta que a equipe de suas 36 escolas de mecânica espalhadas por nove estados brasileiros é bem mista, e que, além de estimular a contratação de profissionais mulheres, ela promove entre seus colaboradores, incluindo os homens, aulas sobre como receber e tratar as mulheres que chegam à oficina, sempre com respeito. No ambiente masculino em que cresceu profissionalmente, o assédio sexual a Nalli se resumiu a piadas que ela soube superar. Mas nem todas as mulheres têm a "sorte" e a disposição emocional para encarar a cultura do desrespeito e subjugação do feminino em setores do mercado de trabalho com muitos homens, como áreas da tecnologia da informação, construção civil e outros campos das exatas. Segundo o Censo de 2010, homens correspondem a 75% da força de trabalho na área de programação. Na indústria, eles são 63,6%, e na construção civil, este índice salta para 94,4%. Ainda ocupando, segundo o mesmo censo, apenas 46% da população economicamente ativa do Brasil, são as mulheres que sofrem mais no mercado de trabalho: um levantamento da empresa de gestão de recursos humanos Mindsight junto a 11 mil entrevistados revelou que mulheres sofrem três vezes mais assédio sexual do que homens nestes ambientes. Especialista da S2 Consultoria, Renato Santos diz que a empresa acumula uma experiência de mais de 600 casos em diversas organizações que procuram seus serviços para lidar com problemas de compliance. 9% destes casos são de profissionais relatando sofrerem assédio sexual em seu ambiente de trabalho e, deste universo, 87% são mulheres. "A dinâmica do assédio sexual tem guarida no machismo estrutural da nossa sociedade. E os setores predominantemente masculinos são os mais suscetíveis a este risco comportamental, pois o machismo estará mais latente e dominante. Mas isto também dependerá da cultura da organização. No básico, se a organização tolera micro agressões, como piadas, apelidos, comentários machistas ou não, por exemplo. O reforço com treinamentos de conscientização precisa ser frequente e enérgico. Apresentar e discutir sobre comportamentos inadequados devem ser feitos rotineiramente. E, além da educação, a organização deve disponibilizar canais confidenciais e seguros para realização de denúncias e a apuração delas deve ser realizada de forma independente e séria. Uma vez apurado e identificado o agressor ou assediador, este deve sofrer medidas disciplinares para minimizar a sensação de impunidade - diz o consultor.