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Em quarentena por coronavírus, crianças da periferia de SP têm apenas arroz para comer

A fome se espalhou antes que o novo coronavírus pela periferia de São Paulo.

Foto:Rovena Rosa/Agência Brasil
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A reportagem percorreu e conversou com moradores de todas as regiões da capital, e encontrou vários casos de pessoas que tiveram diminuição brusca na alimentação

05 abril, 2020

São Paulo (SP) -  Crianças acostumadas com até cinco refeições por dia na escola -hoje paralisadas devido à quarentena- têm dietas pobres que podem se resumir a arroz puro. Ao mesmo tempo que as aulas pararam, os pais dessas crianças, muito autônomos sem carteira assinada, perderam renda. Agora, passam o dia ouvindo pedidos dos filhos que não conseguem atender, de iogurte a uma simples maçã. As medidas de isolamento, indicadas por especialistas para diminuir a curva de transmissão do coronavírus, foram mais ágeis que as ações de ajuda aos pobres. A reportagem percorreu e conversou com moradores de todas as regiões da capital, e encontrou vários casos de pessoas que tiveram diminuição brusca na alimentação, afetando principalmente a dieta das crianças. No Jardim Papai Noel, em Parelheiros (extremo sul), o baque foi sentido desde o dia 23, quando escolas pararam. Depois, foi a vez do comércio e de outros estabelecimentos. Sem renda fixa, Rosangela da Silva, 36, se viu com mais cinco bocas, que antes faziam as refeições na escola, para alimentar. Ela mora na parte mais pobre de um bairro paupérrimo, em um barraco de madeira com chão de terra, onde só se chega por uma trilha. Os filhos dela, o mais novo com três anos, sentiram a mudança na alimentação. Diego, 7, enumera o que sente mais falta na escola: primeiro, o jogo de pebolim; depois, melancia, bolo, carne moída, pão com manteiga, tudo que não tem em casa. A geladeira está praticamente vazia, com uma panela de arroz, leite e um pote de margarina. Recentemente, Rosângela conseguiu comprar arroz e feijão. Mas nada de verduras, legumes, frutas, carne ou outra proteína animal. "Às vezes a gente arruma algum pão dormido na padaria", diz ela. Quarta-feira (1º/4), foi vender chicletes próximo do Terminal Varginha, em Parelheiros. Após algumas horas no canteiro central, conseguiu alguns mantimentos e um pouco de dinheiro. A comida que conseguiu será feita num fogareiro improvisado com álcool, já que o gás acabou. A cidade de São Paulo tem cerca de 618 mil famílias em situação de extrema pobreza (que vivem com menos de um quarto de salário mínimo), segundo dados mais recentes, de 2018. São famílias como a de Rosângela. Com o impacto do coronavírus, porém, muitos estão entrando no grupo. Sem emprego desde que a quarentena estourou, o pedreiro Márcio Pereira da Silva, 40, pai de seis filhos, é um deles. "Parou tudo, fecharam depósitos. A gente que trabalha de pedreiro depende do material do depósito. As pessoas também não querem mais que a gente entre na casa delas. Quem trabalha que nem eu, por conta, fica difícil. Se eu não sair um dia para trabalhar, não vou ter um real", diz. Ele diz que já teve ocasiões em que a comida era arroz puro. "Ô bicho ruim, só com o tempero do sal mesmo." Sem gás, ele agradece quando tem o feijão como par do arroz. Tudo feito num fogão a carvão, improvisado por ele para substituir o gás. O filho mais novo, de três anos, não se conforma com o novo cardápio. "Diz todo dia: 'Pai, eu quero danone. Pai, eu quero maçã'. Ontem bem cedo estava pedindo o quê? Morango! Eu digo: 'Ah, meu filho, você não tá na creche não, você tá em casa. Na creche você tinha essas coisas'", conta. A dieta repetida, sem nutrientes, com diminuição da quantidade e qualidade, faz com que algumas dessas famílias entrem no grau de insegurança alimentar grave. "Embora possa não haver consenso sobre o tema, manifesto minha percepção: onde há insegurança alimentar, há fome", afirma Semíramis Martins Alvares Domene, professora de nutrição da Unifesp (campus Baixada Santista). Ela afirma que os cardápios escolares seguem princípios fundamentais da alimentação adequada, com grãos, como arroz e o feijão, produtos de origem animal como ovos, laticínios e diferentes carnes, hortaliças e frutas. "Ao deixar de frequentar uma creche, haverá evidente prejuízo às crianças das famílias pobres. Os primeiros sinais da deficiência nutricional de vitaminas e minerais são pouco perceptíveis, mas certamente implicarão em fragilidade do sistema imune, que neste momento pode aumentar o agravamento das doenças, entre elas as respiratórias, como a Covid-19", diz. Mesmo numa cidade com melhor situação econômica para o padrão brasileiro, há pessoas que morrem de desnutrição. Levantamento feito pela Folha de S.Paulo no sistema Datasus mostra que, entre 2010 e 2017 (dado mais recente), foram 1.251 mortes que tiveram esse problema entre suas causas. Os bairros da periferia lideram a lista, encabeçada pelo Itaim Paulista (zona leste), com 36 mortes, seguido pelo Jabaquara (zona sul, 30) e Brasilândia (zona norte, 28). Moradora da Favela do Gato, na Brasilândia, a auxiliar de eventos Regina Marcondes, 48, diz que os três filhos nunca passaram aperto, até agora. "Quando eu trabalhava, dava para comprar as coisas do bom e do melhor. Agora, não tem nem como", diz ela, que é autônoma e fez o último trabalho em fevereiro. O advogado Damazio Gomes da Silva, do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, na zona leste, diz que a situação é muito difícil e que estão pedindo doações para famílias sem alimentos. Responsável por uma associação de moradores no Jardim Papai Noel, Maria de Loudes dos Anjos Pereira, 57, diz que a comida que chegava para distribuição à população mais pobre desapareceu. "Eu recebia toda semana das entidades. Agora, faz 20 dias que não vem nada", diz. A reportagem acompanhou enquanto ela levava um pão à casa de Josefa Leite, 36. Mãe de três filhos, ela se emociona ao dizer que não sabe como vai manter a família daqui para a frente. "Antes desse coronavírus, eu ia fazer uma faxina, essas coisas. Mas agora tô fazendo é nada", diz. "Mas Deus há de prover." A Prefeitura de São Paulo e o governo estadual lançaram programas para ajudar famílias de alunos. No caso da gestão Bruno Covas (PSDB), repasses começaram só nesta quinta (2/4) e devem terminar na semana que vem. A medida atenderá famílias de 273 mil alunos da rede em situação de vulnerabilidade. Os valores mensais são de R$ 55 para ensino fundamental, R$ 63 para pré-escola e R$ 101 para creches. Para Márcia Simões, vice-presidente do Conselho de Alimentação Escolar, os valores não são suficientes. A gestão João Doria (PSDB) também diz que beneficiará famílias de 223 mil alunos na capital e 733 mil no estado. Os valores começarão a ser pagos neste mês.

Fonte: FOLHAPRESS / Poptvnews