Segunda-feira, 23 de
Dezembro de 2024
Mundo

Odeia

A cidade que odeia as mulheres

As mulheres são mortas simplesmente pelo fato de serem mulheres

Foto:Jesús Alcázar
post
Mónica Sparza, desaparecida em 2009

17 dezembro, 2019

Ciudad Juarez (México) -Ciudad Juárez, na fronteira do México com os Estados Unidos, é conhecida pelos brutais assassinatos de mulheres. Desde 1993, quando as mortes começaram a ser contadas, há cerca de 1.100 desaparecidas. a maioria sem pistas. Algumas identificadas após seus corpos terem sido mutilados. Até hoje nenhum caso sequer foi resolvido.Ela saiu de casa ansiosa para fazer a prova que teria na escola. Silvia Elena, 16 anos, se formaria naquele ano de 1995 no ensino médio. À mãe, disse que se apressaria para depois ir à sapataria onde trabalhava meio turno, no centro de Ciudad Juárez, no México. “Que Deus te acompanhe”, despediu-se a mãe, Ramona Morales. Às 19 h, como todas as noites, ela foi esperar a filha no ponto de ônibus. Silvia não voltou para casa. “Deve ter ido a alguma festa”, pensou Ramona, não sem estranhar o silêncio de quem sempre avisava aonde ia. Ela não apareceu. A mãe empreendeu uma busca incansável pela filha. Foi às autoridades, denunciou, protestou. Esperou. Quase dois meses depois, a polícia tocou à porta. “Encontramos sua filha”. “Ela está bem?” Os agentes não responderam. Ramona só viu os restos do corpo achado em um terreno baldio, com sinais de estupro e tortura. Os seios traziam marcas de dentes, foram mutilados. Ramona nunca soube o que aconteceu. Depois do desaparecimento da filha, recebeu alguns telefonemas anônimos. O último aconteceu no dia em que o corpo da jovem foi encontrado. Quando ligavam, ao fundo podia-se escutar “Amor proibido”, música da cantora Selena, artista preferida de Silvia. Mesmo sem provas, as autoridades culparam o egípcio Latif Sharif Sharif, que já era acusado de outros homicídios de mulheres na região. Ele morreu na cadeia pouco tempo depois. Ramona não acredita que o autor do crime tenha sido Sharif porque ouviu um juiz admitir que no caso de Silvia não havia prova nenhuma que pudesse incriminá-lo. O drama de Ramona, infelizmente, não é o único. Ele se repete nas histórias de mais de mil mães que pedem justiça enquanto choram pelas filhas que nunca voltaram para casa — cerca de 1.100. Esse é o número oficial de mulheres mortas desde 1993, quando começaram a contar os assassinatos em série nessa que é considerada a cidade mais violenta do mundo. Só em outubro de 2010, 47 jovens tiveram seus sonhos interrompidos de maneira absurda. Foi o mês com mais mortes nos últimos 17 anos. A paisagem seca da fronteira do México com os Estados Unidos, onde fica Juárez, já faz dessa região, por si só, um lugar hostil à sobrevivência. Faltam políticas sociais e a economia é fraca. A maior fonte de emprego são as maquiladoras, indústrias multinacionais de mão de obra barata que fabricam peças para exportação. Elas chegaram a Juárez entre os anos 70 e 80, estimuladas pelos baixos impostos e a proximidade com o mercado americano. Atraíram muita gente à fronteira, principalmente mulheres. Trabalhadoras jovens, de origem humilde, exatamente o perfil das assassinadas. A cidade tem cerca de dois milhões de habitantes, mas está perdendo moradores: nos últimos três anos, 230 mil pessoas a deixaram com medo da violência. Pela proximidade com o município de El Paso (Texas) e, consequentemente, com o mercado americano, muitos cartéis disputam o controle do tráfico de drogas, impondo um clima de terror nas ruas. Não são poucas as casas abandonadas por aqueles que tiveram familiares assassinados e sofreram extorsões de delinquentes, da polícia ou do Exército — que ocupa Juárez, teoricamente, para garantir a segurança. Muitos comerciantes fecharam suas lojas. Não suportaram ter de pagar as “cotas” de proteção exigidas pelo crime organizado, que agora começou a cobrar as taxas até de escolas. Nesse ambiente, as mulheres são as vítimas mais vulneráveis. Quando os assassinatos começaram a ser alardeados, dizia-se que grupos criminosos sequestravam as jovens para rituais de sacrifício. O corpo da mulher era uma maneira de o homem que se iniciava no cartel do tráfico demonstrar seu poder diante do grupo. O lugar e o jeito como os corpos eram encontrados (de barriga para baixo, com as mãos amarradas, marcas e mutilações nos genitais) funcionavam como mensagens que os grupos enviavam a companheiros ou membros de facções inimigas. Também se cogitou a existência na cidade de uma indústria de filmes snuff, produções que mostram crimes sexuais e homicídios verdadeiros. Mas Imelda Marrufo, coordenadora da Mesa de Mujeres de Ciudad Juárez, uma rede de dez organizações que trabalham com o tema da violência de gênero, tem outra explicação. “Em Juárez se perpetua uma cultura sexista contra as mulheres. Está presente em vários níveis da sociedade: nas instituições públicas, nas escolas, na igreja, nos três poderes”, diz ela. “Aqui está disseminada a ideia de que a vida delas é descartável como uma peça das maquiladoras. Os assassinos fazem o que querem. Assim pensa tanto quem comete o crime quanto quem permite que ele fique impune.” “E como se a mulher carregasse um cartaz onde se lê, ‘sou sua’”
Rolsalba Robles, pesquisadora acadêmica Embora não se encaixe no perfil de assassinatos em série de mulheres que vêm acontecendo há duas décadas na cidade, um exemplo escancarado da impunidade em Juárez é o caso de Rubí Escobedo, 16 anos. Morta em um crime passional, seu namorado, Sergio Rafael Barraza, foi levado a julgamento e confessou tê-la matado em 2008. Pediu perdão à mãe da menina em plena audiência. Para o desespero da família e espanto da opinião pública, foi declarado inocente. Os juízes Catalina Ochoa, Netzahualcoyotl Zuñiga e Rafael Boudib declararam “falta de evidências” para comprovar o crime. Foi um escândalo. A absolvição em um caso tão óbvio repercutiu na cidade e a mãe, Marisela, armou uma revolução. O caso foi reaberto e Sergio declarado culpado. O problema é que ele já tinha fugido. O dia da entrevista de Marie Claire com Marisela, em novembro, coincidiu com o aniversário de Rubí. Ela faria 19 anos. A mãe lembrou a data no fim da conversa, com uma voz pesada, mas ainda firme. Disse que não iria descansar até pôr o assassino na cadeia. Mas os algozes foram mais rápidos do que ela. Na noite de 16 de dezembro último, Marisela fazia parte de um protesto de mulheres em frente ao Palácio do Governo de Chihuahua, estado onde fica Juárez, e levou um tiro fatal*. O crime causou indignação, até porque ela era das mães mais ativas de Juárez. Marisela investigava por conta própria e pagava por pistas que levassem a Sergio. Rubí conheceu Sergio aos 14 anos. Acabou envolvida pelo papo do rapaz, que trabalhava em uma carpintaria que pertencia a Marisela. Sergio convenceu Rubí a fugirem juntos, mantendo a menina afastada da família. Foi Marisela quem iniciou uma reaproximação e até os ajudou a montar uma casa. Rubí estava grávida. A relação do casal era conturbada, e Sergio tinha acessos de ciúme e violência mesmo depois de a filha deles nascer. Diz que matou Rubí porque a flagrou tendo relações sexuais com outro. Sergio também teria matado o suposto amante, mas nunca apareceu um corpo ou registro de queixa de desaparecimento de um rapaz naquele período. As amigas de Rubí dizem que ela nunca comentou nada sobre o suposto caso extraconjugal. A jovem foi golpeada e queimada. Do corpo, foram encontrados apenas alguns ossos jogados em um cemitério de porcos. Marisela levou as autoridades até o local após seguir as indicações de um conhecido de Sergio. Ela ficou com a guarda da neta, Heiri, 2 anos. Agora, ninguém sabe o que será da menina. Os casos de violência de gênero na cidade adquirem contornos de uma execução. “Tem a ver com questões ainda não resolvidas na sociedade mexicana: impunidade, falta de políticas públicas de atenção às mulheres, falta do hábito de denunciar. É como se a mulher carregasse um cartaz ‘Sou sua’. É a crônica anunciada de um feminicídio”, diz Rosalba Robles, pesquisadora da Universidade Autônoma de Ciudad Juárez. A questão do sexismo, entretanto, acontece no México como um todo, sendo que em alguns estados é ainda pior. Além de Chihuahua, os estados do México (que inclui a capital do país), Sinaloa, Quintana Roo e Tamaulipas são onde acontecem mais assassinatos. Fora o estado do México, que fica no centro, os outros são no norte do país, onde a sociedade é mais conservadora. Só em 2009, foram mais de 1.700 feminicídios no país, segundo dados reunidos pelo Observatório Cidadão Nacional do Feminicídio. Naquele ano, apenas o Estado de Chihuahua registrou 245, sendo 164 em Juárez. Julia Monárrez Fragoso, de El Colegio de la Frontera Norte, centro de pesquisa especializado em estudos dessa região, explica a situação peculiar de Juárez com o que chama de feminicídio sexual sistêmico. “São feminicídios porque as mulheres são assassinadas pelo simples fato de serem mulheres. Desde que os casos começaram a ser sistematizados, percebemos que as vítimas apresentavam códigos. Eram jovens, de origem humilde, mortas em atos violentos que deixavam marcas no corpo, como mutilações de genitais”, diz Julia. “Juárez é um caso particular pela frequência, continuidade e impunidade com que acontecem os feminicídios. E continuam acontecendo, embora alguns corpos não apareçam”, afirma.

DE MÃE PARA MÃE
“Penso coisas tristes, a mente é ágil. Prefiro imaginar que ela está viva e bem onde estiver, e que um dia vamos nos reencontrar.” Olga Esparza é mãe de Mónica. A moça desapareceu em março de 2009, então com 18 anos. Saiu para fazer um trabalho da faculdade. A mãe ligou no meio da tarde e Mónica avisou que ainda demoraria um pouco. Nunca mais atendeu o celular. A família ouviu das autoridades que o mais próvavel era que ela tivesse fugido com algum namorado. Outras mães ouvem coisas piores de quem deveria ajudá-las. Dizem a elas que as filhas levavam vida dupla, que eram prostitutas. Diante da inércia do poder local, é o pai da menina, Ricardo Alanís, quem se arrisca a percorrer bares e casas noturnas em busca da filha, que, acreditam, pode ter sido sequestrada por um cartel. Olga pressiona as autoridades. Em uma visita da primeira-dama Margarita Zavala a Juárez, ela se meteu entre a segurança e pediu ajuda, “de mãe para mãe”. Outro dia, foi à cidade de Chihuahua juntar-se a outras mães em um plantão em frente ao gabinete do novo governador. “Muitas meninas estão desaparecendo. E suas mães estão sendo consumidas em vida”, diz. Do desejo em comum por justiça, surgiram organizações civis em Juárez que orientam as mães das vítimas, dão assistência psicológica e jurídica. Essas organizações e também a luta das mães ajudam a dar visibilidade ao drama de Juárez. É um universo majoritariamente feminino, mas aos poucos surgem homens que tentam reverter o papel de antagonistas. O dramaturgo mexicano Humberto Robles colabora, desde 2001, com a associação Nuestras Hijas de Regreso a Casa (Nossas Filhas de Volta para Casa). A obra de teatro Mujeres de arena (Mulheres de areia), escrita por ele, tem o feminicídio como tema e já foi representada em 13 países. De Madri, o jornalista Javier Juárez comanda a rede Sin Ellas No Estamos Todos (Sem Elas Não Estamos Completos), que reúne fotos e informações de desaparecidas. Manter o ativismo de antes, no entanto, é difícil. Quem afirma é Marisela Ortiz, cofundadora da associação Nuestras Hijas de Regreso a Casa e ex-professora de Lilia Alejandra García Andrade. A jovem de 17 anos e mãe de dois filhos foi encontrada morta em 2001 em um terreno baldio. “Estamos totalmente desprotegidas. Mataram meu genro e já fui ameaçada com pistola na cabeça. Você acha que podemos gritar que estamos investigando? Os primeiros que vão morrer são meus filhos”, diz. “Continuamos seguindo as pistas das jovens, mas não nos fazemos visíveis”. Desde que o presidente Felipe Calderón assumiu o poder, em 2006, e iniciou uma ofensiva contra o crime organizado, a violência aumentou na fronteira norte do México. Mais de 29 mil pessoas morreram nos confrontos entre cartéis e forças de segurança. Há mulheres envolvidas no narcotráfico, e elas também morrem nessa guerra, como os homens. Também é verdade, no entanto, que esse contexto tem feito com que se generalizem os assassinatos, se agrave a impunidade e a atenção aos feminicídios seja desviada. As associações listam o que é necessário mudar — ou o mínimo necessário para que os crimes cessem. Governantes comprometidos em restabelecer o valor da vida. Políticas de erradicação dos feminicídios. Especialistas para investigar os assassinatos e ajudar na busca das desaparecidas. Punição dos responsáveis. O caminho é longo e cada mulher de Juárez busca forças em fontes diferentes. Marisela, na educação dos jovens que convivem com a violência. Ramona, na neta, filha de um dos irmãos de Silvia. Olga, na esperança de reencontrar Mónica. Todas pedem, com a dor em comum: nenhuma morta a mais.

Uma campanha errada (mas importante)

A linha de cosméticos para a temporada outono-inverno 2010 da marca MAC tinha tudo para ser uma parceria de sucesso com a Rodarte, mas acabou criando polêmica quando saiu à venda. A coleção inspirada nos feminicídios de Ciudad Juárez, no México, caiu como uma brincadeira de mau gosto. Trazia esmaltes de unhas com nomes como “Juárez” e “Factory”, em referência às maquiladoras, principal fonte de emprego da cidade, batons “Ghost Town” e sombras “Sleepwalker” ou Bordertown”. Uma modelo de aparência apática e fantasmagórica lembrava as vítimas dos assassinatos na cidade. A rejeição à ideia começou na internet, onde blogs de moda tacharam a campanha de insensível. Associações de apoio às mães que perderam suas filhas pela violência de Juárez lançaram um boicote aos produtos da marca. Admitem que o lançamento gerou um debate sobre o problema, mas de forma degradante. A resposta da MAC foi imediata. O presidente da companhia, John Dempsey, anunciou que a intenção não era ofender, e que a linha não seria distribuída no México “por respeito”. A empresa também abriu inscrições para apoiar finan-ceiramente, por dois anos, associações que lutam contra o feminicídio em Juárez. Um comunicado do dia 14 de setembro informava que seis organizações seriam contempladas com a ajuda: Casa Amiga, Centro de Derechos Humanos de las Mujeres, Fundación María Sagrario, Justicia Para Nuestras Hijas, Madres en Busca de Justicia e Sin Violencia.

Fonte: AFP c/ edição