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Outubro de 2024
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Polêmica

Sem direito a licença-maternidade, prefeita de Palmas monta quarto do filho Vittório ao lado de gabinete

Lei Orgânica de Palmas não prevê direito para prefeita se afastar ao dar à luz. Sala, que antes era ocupada por chefe de gabinete, passou a ter berço, poltrona para amamentação e bichinhos de pelúcia

Foto: Jesana de Jesus/G1
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Vittório amamenta no quartinho montado no apartamento onde a família mora em Palmas

11 abril, 2022

É na prefeitura de Palmas que o bebê Vittorio Caetano Mantoan, de 4 meses, tem passado boa parte dos seus dias. O quartinho fica em uma sala ao lado do gabinete da mãe, a prefeita Cinthia Ribeiro (PSDB), única mulher eleita em 2020 para comandar uma capital brasileira. O quartinho colorido com cheirinho de bebê é a cena mais fofa que se passa no prédio público situado na avenida JK, uma das principais da capital do Tocantins. Mas o motivo que levou a mãe a reservar um espaço para o filho no órgão impressiona: é que a Lei Orgânica do município não prevê licença-maternidade para prefeitas, benefício garantido às mães que se afastam do emprego no final da gravidez ou logo após darem à luz. Cinthia engravidou aos 44 anos, em plena pandemia da Covid-19. Ao se deparar com alguns sintomas, chegou a pensar que estaria com coronavírus. Mas não, era um bebê a caminho. Vittorio é fruto da relação de Cinthia com o pastor e advogado Eduardo Mantoan. A gestora se casou quando estava grávida de sete meses, em uma cerimônia exclusiva para amigos e parentes, em setembro do ano passado. Vittorio é o segundo filho. O primogênito João Antônio, de 14 anos, é fruto do casamento com o senador João Ribeiro, que morreu em 2013 após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). Durante essa segunda gestação, Cinthia não parou de trabalhar. Dois dias antes de o bebê vir ao mundo, estava entregando obras. Em meio às reuniões e compromissos políticos nem chegou a se preocupar com a licença. Para ela, era um direito garantido, que certamente estaria previsto na lei. “Alguns secretários e assessores diretos já preocupados, me questionavam: ‘Prefeita, como vai ser isso, em que momento a senhora vai precisar sair? O vice vai assumir? Quando a senhora vai poder tirar a sua licença?’. Foi quando eu pedi um estudo para que o Chefe da Casa Civil me passasse as informações que me levassem a tomar essa decisão. Infelizmente, a Lei Orgânica de Palmas não prevê o afastamento da prefeita para uma licença-maternidade, sequer o termo ‘prefeita’ nós temos escrito na lei. A gente está falando de uma cidade jovem de 32 anos”. Quando soube, a prefeita precisou se adaptar à falta do direito, que é previsto para trabalhadoras do setor privado e servidoras públicas. A chefe de gabinete se dispôs a sair da sala e, em um prazo de 12 dias o quartinho estava montado. Vittorio nasceu no dia 15 de novembro de 2021, dia em que a prefeita comemorava um ano da vitória nas eleições municipais de 2020. Cinthia não teve licença. Relatou que 10 dias após dar à luz estava participando da inauguração do Natal Luz. “É claro que o corpo da gente precisa desse descanso que é extremamente necessário, o repouso, a recuperação. E não ter essa previsão dificultou muito, tanto o funcionamento das coisas porque demanda a minha presença, como também aquilo que não volta. O Vittorio não vai ter um mês novamente. E ter que fazer gestão da cidade e conciliar a figura da maternidade, está sendo algo desafiador. Mas em contrapartida, a cidade está me ajudando a ser mãe e o Vittorio está me ajudando a ser prefeita”. O espaço do bebê tem papel de parede colorido, berço, sofá, poltrona para amamentação, bancada para trocar a fralda, plantas e muitos ursinhos de pelúcia espalhados por cada canto. “Resolvi conciliar a agenda de gestão com a agenda de mãe. Os secretários se reuniram, foi um presente super lindo, compraram berço, compraram cadeira para amamentar. Tentamos humanizar o espaço. Compramos papel de parede, colocamos os bichinhos dele no lugar e a sala da chefe de gabinete deu espaço ao anexo do Vittorio”. O neném vai para prefeitura apenas quando Cinthia tem agenda interna. Quando participa de compromissos externos, ele permanece em casa. No quartinho ao lado do gabinete da mãe, recebe cuidados de uma babá. Entre uma reunião e outra, a prefeita precisa interromper a agenda para cumprir um dos compromissos mais importantes: dar leite materno, atenção e carinho ao filho. Principalmente, quando Cinthia escuta o chorinho do caçula, ela não resiste.  No intervalo, entre uma agenda e outra, eu consigo amamentar, matar a saudade, ver um pouquinho, às vezes eu trago meu filho de 14 anos também para não gerar ciúmes, coloco ele para fazer tarefa aqui do lado e a gente vai se organizando -  Cinthia Ribeiro. A experiência de ter o filho do lado enquanto trabalha tem sido “incrível”, na visão de Cinthia. Mas será o que Vittorio vai achar quando crescer e ficar sabendo que passou os seus primeiros meses de vida dentro de um órgão público? “Ou ele vai tomar muita paixão pela vida pública e vai querer seguir os mesmos caminhos da mãe com todas as alegrias e adversidades. Ou ele vai ficar muito bravo e vai querer fazer qualquer outra coisa que não seja política”, brincou Cinthia.

Mudança na lei?
As leis orgânicas são normas que regulam a vida pública na cidade, sempre respeitando a Constituição Federal e a Constituição do Estado. Age como uma Constituição Municipal, sendo considerada a lei mais importante que rege os municípios e o Distrito Federal. A que está em vigor na capital foi publicada no dia 20 de julho de 1999. Ao longo dos anos sofreu algumas modificações por meio de emendas. Mas nenhuma delas incluiu o benefício da licença para prefeitas mães. Cinthia diz que a norma não tem sequer o nome “prefeita”. “Palmas não estava preparada para ter uma prefeita e nem uma prefeita mãe”, disse. Com o intuito de impulsionar mudanças, pediu que os vereadores modifiquem a lei a fim de resguardar direitos não apenas dela, mas também das próximas mulheres que governarão a cidade. “Eu fiz inclusive um grande pedido para a Câmara de Vereadores de Palmas, que pelo menos incluísse no texto a palavra ‘prefeita’. Eu acho que podemos dar exemplo para outras capitais e começar a fazer a revisão da própria da Lei Orgânica garantindo essa possibilidade para que outras prefeitas que venham a me suceder e que possam ser mães, tenham tenham essa garantia da licença-maternidade”. O presidente da Comissão de Revisão da Lei Orgânica de Palmas, vereador Moisemar Marinho (PSB), informou que, após o caso envolvendo Cinthia, a licença-maternidade será incluída na lei. "O parlamento nunca necessitou de um caso como aconteceu o ano passado, com o nascimento do filho da prefeita. Nós entendemos que hoje, com essa evolução do direito da maternidade, da licença maternidade, nada mais justo, aproveitando dessa revisão e dessa construção do novo texto da Lei Orgânica do município de Palmas, acrescentar esse direito à mulher".

Cenário nacional
Do total de 5.570 municípios do Brasil, apenas 666 são administrados por mulheres. Nesse recorte 52 são prefeitas de cidades com mais de 80 mil habitantes, segundo a Frente Nacional de Prefeitos (FNP). A entidade é suprapartidária e reúne 412 cidades com mais de 80 mil habitantes, o que representa todas as capitais, 61% da população e 74% do PIB do país. "A política infelizmente no Brasil ainda, ela é muito masculinizada. E os elementos da política, as leis, os regimentos, as próprias situações partidárias, elas ainda não favorecem uma participação mais efetiva das mulheres", ressaltou o presidente da FNP, o prefeito Edvaldo Nogueira. A FNP não tem um levantamento sobre as cidades que possuem Lei Orgânica que traz a previsão da licença. Um dos poucos exemplos é o município de São Paulo. A lei prevê o direito para o Chefe do Poder Executivo, do gênero feminino, ou independentemente de seu gênero, orientação sexual ou identidade de gênero e estado civil, à licença gestante ou licença parental de longa duração, ambas de até 180 dias, com direito aos vencimentos, concedida segundo os mesmos critérios e condições estabelecidos para os funcionários públicos municipais. No âmbito Legislativo, o cenário é semelhante. Mas em meio ao aumento da participação feminina, algumas mudanças têm sido notadas. Em setembro do ano passado, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados publicou um ato que inclui, nos painéis de votação do Plenário e das Comissões, o termo “em licença-maternidade” ou “em licença-paternidade” quando a/o parlamentar estiver ausente por estas condições. A medida foi solicitada após situações de constrangimento em função de votações nas quais aparecia no painel que os deputados ou deputadas constavam como “ausentes” da votação. A a Constituição Federal garante o direito à licença-maternidade, mas há um dispositivo específico que gera insegurança para as prefeitas. O artigo 7º garante 120 dias de licença-maternidade a todas. O problema é que o artigo 56 que fala da suplência dos mandatos. Quando era vereadora em Rio Branco, a ex-senadora e ex-ministra Marina Silva (Rede Sustentabilidade) passou por um drama 16 dias depois de dar à luz a terceira filha, Moara. Ela foi chamada às pressas à Câmara porque poderia ter o mandato cassado por faltas injustificadas. "E eu disse, como assim? Todo mundo sabe que eu estava grávida, que eu ganhei o bebê e que eu preciso cumprir o período né, pós o parto".

Marina Silva saiu correndo de casa para se defender.

"Eu subi à tribuna, estava muito nervosa, e naquele momento eu fui tentar me defender, mas, de repente, quando eu fui falar, o meu leite começou a vazar. E parecia que descia em bicas, assim. E alguns vereadores homens, eram 16 vereadores, só tínhamos três mulheres, começaram a rir da minha situação. Eu comecei a chorar, não conseguia dizer uma palavra, eu só chorava, todo mundo sabe que uma mulher após ganhar o bebê fica muito sensível, e eu estava muito sensível. Eu me sentia não acolhida, injustiçada, e sofrendo ali uma grande agressão". O caso, em 1990, gerou comoção, e a Câmara de Rio Branco regulamentou o direito de licença-maternidade para cargos eletivos. Três décadas depois, o país ainda tem muito a avançar. "Nós temos uma política que acaba sendo produzida desde uma perspectiva masculina [...] e não se preocupa adequadamente com a necessidade de proteção da maternidade mesmo, a importância por exemplo da amamentação para a saúde da criança e a consideração disso como um direito social, ou seja, como um direito que interessa a toda a sociedade", ressaltou a juíza do trabalho e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Valdete Souto Severo.

Prefeitura de Palmas adaptada
O bebê de olhos azuis, sempre atento aos movimentos ao seu redor, tem ensinado lições à mãe gestora. No início deste mês, percorrendo alguns andares da prefeitura para parabenizar as servidoras pelo Dia Internacional da Mulher, Cinthia se deparou com uma moradora de Palmas carregando um bebê recém-nascido e percebeu que o prédio não tinha lugar para mães amamentarem ou trocarem as fraldas, por exemplo. “Por que a maternidade me faz olhar para as mulheres que estão vivenciando o mesmo momento que eu de uma forma diferente? Na prefeitura, agora é regra: tem que ter um espaço para as mulheres amamentarem os seus filhos, tem que ter um espaço para fazer a troca da fralda, tem que ter um espaço para elas tomarem uma água, prepararem uma mamadeira. Antes desse fato, desse dia, eu estava tão no automático que eu achava que não precisava. O espaço para elas veio para ficar”, disse. Segundo ela, o fato de ser uma prefeita mulher tem contribuído para avanços em políticas públicas. “O sistema habitacional, no formato que trabalhamos, a propriedade dos imóveis entregues é escriturada no nome das mulheres. Nós entregamos 3.500 moradias nos últimos três anos, aumentamos a quantidade de vagas nas creches. À medida que elas têm a certeza que seus filhos estão sendo bem cuidados, educados, elas têm a garantia de ocupar outros lugares”, ressaltou.

Mulher no poder
Cinthia Ribeiro, de 45 anos, é natural de Anápolis (GO). Chegou a iniciar o curso de engenharia civil em Uberaba (MG), mas acabou migrando para outra área. Em 2004, se graduou em Fonoaudiologia em Brasília. É pós-graduada em Estado de Direito e Combate à Corrupção, pela Escola de Magistratura do Tocantins (Esmat). A prefeita, que vive em Palmas há 22 anos, passou a ser conhecida no meio político após o casamento com o então senador João Ribeiro, com quem teve um filho, hoje com 14 anos. O político faleceu em 2013. A partir da morte, Cinthia recebeu propostas e passou a atuar em cargos públicos. “De toda essa dor e adversidade nasceu algo muito importante. Eu tive a oportunidade de vir para ser chefe de gabinete do PSDB, assumir a presidência do PSDB Mulher no estado do Tocantins, prospectei com outros grupos para participar inclusive da eleição em 2016, como vice na chapa do meu antecessor”. Em 2016, Carlos Amastha e a vice Cinthia Ribeiro venceram as eleições municipais em Palmas. Mas em 2018, ela assumiu a chefia do Poder Executivo, após Amastha renunciar ao cargo para concorrer como candidato a governador do Tocantins. Em 2020, recebeu a maioria dos votos válidos e se tornou a única prefeita a comandar uma capital no Brasil. Atualmente é também presidente estadual do PSDB no Tocantins. “O cenário político para as mulheres é muito hostil, chega a ser um ambiente de uma disputa nada saudável. [...] Por muitas vezes, eles olham para as mulheres como excelentes vice-governadoras, vice-prefeitas ou cargos aonde as mulheres estejam subordinadas. Mas quando é para assumir uma linha de protagonismo, as pessoas pensam diferente. Esse talvez seja um dos fatores da baixíssima representatividade nos cargos de comando do Executivo”. Ocupando um espaço de poder majoritariamente comandado por homens, Cinthia diz ter vivenciado várias situações de preconceito. “Muitas pessoas falaram: ‘Será que ela dá conta? Como vai ser isso, cuidar de casa, cuidar de menino, fazer tudo ao mesmo tempo. Inclusive as pessoas [falavam]: ‘Olha, deixa eu te explicar como é que se faz. Olha, deixa eu te dizer como funciona o orçamento’. Era como se eu tivesse consultorias 24h de pessoas me mostrando qual era o caminho, porque afinal de contas, ela não sabia o que fazer ou ela não se preparou para isso”, finalizou.