Gerar uma vida e dar à luz um ser humano nem sempre sai como o esperado. No caso das mães, por vezes, há duras causas que implicam dificuldades capazes de impedi-las de assumir a maternidade. Elas incluem, por exemplo, a falta de suporte familiar, a negação da paternidade por parte de quem tem 50% da responsabilidade sobre a criança e dificuldades financeiras. O reflexo dessa realidade aparece em dados: nos últimos três anos, a quantidade de grávidas e puérperas que entregaram os filhos à Justiça para adoção cresceu 32,6%, no Distrito Federal. O balanço faz parte do levantamento mais recente disponibilizado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Em 2019, 46 mães buscaram a Vara da Infância e da Juventude (VIJ) — número que subiu para 61 no ano passado. Apesar disso, nem todas concluíram o processo: três anos atrás, foram 15, contra 25 em 2021. Na contramão da alta, o total de meninos e meninas adotados diminui de 71 para 59, no mesmo período (leia Comparativo). Professora de direito civil na Universidade de Brasília (UnB), Suzana Viegas lembra que a possibilidade de entrega voluntária de crianças para a adoção está prevista na lei. A especialista destaca, entre as principais razões que motivam a decisão, fatores sociais, de saúde mental, culturais, financeiros e familiares. "Muitas são mães solo ou sem uma estrutura familiar que permita acolher a criança. Às vezes, ela não tem condições psicológicas. Muitas delas, depois do parto, passam por um período delicado", observa Suzana. A professora pontua, porém, que problemas como depressão pós-parto podem não ser suficientes para a efetivação do processo. "Pode ser que seja uma reação momentânea. Por isso, o Estado precisa acolhê-las, para que a entrega do bebê não seja precipitada nem causada por um momento de desespero."
Projeto
Nos dois primeiros anos da pandemia, houve aumento da entrega de crianças à adoção, de 14, em 2020, para 25, no ano passado. No entanto, a iniciativa que garante esse direito ainda é pouco conhecida. O Programa de Acompanhamento a Gestantes do TJDFT existe no Distrito Federal desde 2006. O projeto pioneiro acolhe mães que não querem ou não têm condições de assumir os filhos. Elas são atendidas por psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. Depois de o grupo mapear a história de cada uma, um juiz avalia os respectivos casos e toma uma decisão. Coordenadora do curso de serviço social da Universidade Católica de Brasília (UCB), Moema Bragança destaca que essa iniciativa surgiu para legalizar as adoções. "Na década de 1980, principalmente, ocorriam muitas adoções informais, e as crianças eram registradas como filhas de outras pessoas. A estratégia (atual) é uma garantia dos direitos femininos, bem como um avanço no suporte e para prevenção das vulnerabilidades sociais. Muitas vezes, as pessoas têm dificuldade em discutir esse tema e não entendem como o programa é importante para que a mulher se restabeleça, para que consiga pensar com clareza e decidir", comenta. Supervisor da área de adoção da VIJ, no TJDFT, Walter Gomes afirma que a gestante dispõe de um espaço para ser ouvida de forma qualificada. "No programa, a mãe não corre o risco de ser prejulgada ou constrangida, porque o foco é sempre respeitá-la e conservar a intimidade dela. O que queremos é que ela possa construir, com segurança, a melhor decisão. Não estamos ali para convencê-la a entregar ou a desistir do bebê, mas para proporcionar um suporte e um espaço de reflexão", explica.
Adoção
Walter detalha que, após o nascimento do bebê, a interessada no processo de entrega participa de uma audiência de ratificação, para confirmar a decisão. "A legislação garante à mulher o direito de desistir e manter o filho", acrescenta Walter. O supervisor observa, no entanto, que a adoção no Brasil ocorre a passos lentos. "E isso não tem qualquer relação com a burocracia, mas, sim, com o desejo das famílias habilitadas, cujo perfil (de preferência) é extremamente fechado. No curso de preparação, estimulamos, por exemplo, a adoção tardia e interracial, mas 90% delas querem crianças de até 2 anos, saudáveis e sem irmãos", lamenta. De 2019 para cá, segundo o supervisor do TJDFT, houve queda no número de adoções concluídas na capital federal. Mais de 500 famílias encontram-se habilitadas, cerca de 300 passam por essa etapa e 112 crianças aguardam na fila. Em 2016, os servidores públicos Neidson Nobre, 43 anos, e Frederico Nobre, 45, enfrentaram esse processo para adotar Alexandre Nobre, 13. O casal esperou dois anos até conseguir passar por todos os trâmites. "No fim, permitir que nossa família crescesse e perceber que alguém nasceu para nós foram os motivos que me levaram a isso", conta Neidson. Frederico relata que, apesar de demorado e burocrático, o processo de adoção de Alexandre ocorreu de maneira tranquila. "Não tivemos problemas com a VIJ, com o Tribunal de Justiça nem com a instituição que abrigava nosso filho. Tivemos toda uma mudança de perspectiva em relação à vida, aos relacionamentos e ao que é certo e errado. A adoção é um ato de amor, mas não é um conto de fadas. É preciso ser realista e entender que há perdas durante o processo", pondera o morador da Asa Norte. Ele ainda aconselha: "Não embarquem na jornada sem a clareza do que realmente desejam para a família e sem a compreensão de como é o processo de adoção. Estamos falando de uma 'gestação' muito longa, com ansiedade e ressignificação do que entendemos como família".
Desafios
Ao contrário do que pode acontecer em uma gestação, a adoção não ocorre por acidente. Quem deseja ser a nova família de uma criança só pode fazê-lo depois de um longo processo legal. E, se há aspectos diferentes entre a família adotiva e a biológica, as semelhanças também existem. A vontade de ter um filho envolve, geralmente, uma idealização, e isso pode levar, em consequência, a uma desconsideração das particularidades de cada indivíduo. No caso da adoção, a nobreza do ato não esconde percalços. O professor Leonardo Teles Dias, 33 anos, viveu isso de perto. Em julho de 2018, ele e o então companheiro adotaram Wendel Sousa Teles, 12. À época, o menino havia sido devolvido pelas famílias adotivas em duas ocasiões anteriores. Depois de três anos com os novos pais, Wendel e o ex-marido de Leonardo começaram a ter atritos frequentes. "Eles não conseguiram desenvolver um vínculo. Esse foi um dos grandes motivos da nossa separação (Leonardo e o ex). Foi muito difícil, mas tive de fazer uma escolha. Meu companheiro conseguiria se resolver na vida, mas o Wendel, não. Na família anterior, também ocorreu um momento em que o marido teve de escolher entre a esposa e o filho. O casal optou por continuar junto e devolveu a criança", relata. Com esses percalços, o começo da relação com o filho teve desafios. Porém, com o tempo, Leonardo percebeu que tudo de que Wendel precisava era a sensação de ser amado. Após a separação e o afastamento da família do professor - que lidou com brigas motivadas pela adoção e por homofobia -, pai e filho tornaram-se alicerces um do outro. "Somos só nós dois contra o mundo e cuidamos muito um do outro. Encontrei um amor verdadeiro. Quando estou doente, por exemplo, ele fica desesperado, perguntando do que eu preciso o tempo todo. Valeu a pena, em todos os sentidos", completa o educador, emocionado e orgulhoso. "O amor é uma construção, ele não vem de um dia para o outro. Por isso, é tão difícil e há tantas devoluções (de crianças e adolescentes adotados), porque as pessoas criam ilusões e expectativas. As crianças têm histórias e vivências; nós não conseguimos apagar isso. É preciso aprender a lidar", conclui.