Sem máscaras, ele cumprimentou dezenas de apoiadores amontoados em volta de um campo de futebol para ver de perto o seu mito. Numa cena impensável até para quem já não espera nenhuma concessão ao bom senso vinda dali, o presidente posou para as câmeras pegando um bebê no colo. Um risco assumido e que coloca no lixo os esforços de seus subordinados para orientar a população. Fica difícil convencer alguém a mudar pequenos hábitos ou adiar grandes planos, como a gravidez, quando o maior influencer do país sinaliza que não há o que temer e usa até um recém-nascido para provar que não tem medo. O exemplo vem de cima e é replicado em casa. No mesmo dia, seu filho Flávio Bolsonaro sofreu um acidente de quadriciclo e machucou o ombro enquanto passeava com a família na paradisíaca São Gonçalo do Amarante, no Ceará. A informação foi confirmada à CNN Brasil pelo advogado do senador do Republicanos, Frederick Wassef —aquele que teve uma casa em Atibaia invadida pelo sem-teto Fabrício Queiroz, ex-assessor e ex-amigo da família Bolsonaro investigado por supostamente embolsar e distribuir salário de funcionários dos gabinetes do então deputado estadual. Flávio e família estavam hospedados em um hotel de luxo cuja diária chega a R$ 3,5 mil - pouco mais do que um quarto do salário de um senador. Enquanto o filho passeava e o pai provocava aglomeração, o país se aproximava dos 375 mil mortos por Covid. “A falta de vontade política no Brasil é inaceitável”, disse na última semana a diretora-geral da organização Médicos Sem Fronteiras, Meinie Nicolai. Inaceitável para quem vê de fora. Aqui, Bolsonaro dobra a aposta no negacionismo, contrarie as orientações do próprio ministro, coloca em dúvida as informações sobre mortes relacionadas à Covid, divulgadas pelo próprio governo, e quer fazer acreditar que a culpa do desastre é do Supremo Tribunal Federal, que não o deixa governar (na verdade, não o deixa pisar fora do quadrado da Constituição) e dos estados e municípios que usaram os repasses (obrigatórios) para passear de quadriciclo com as famílias. Provavelmente em alguma praia paradisíaca. Mais grave do que a relação de causa e efeito entre a postura do presidente e a tragédia brasileira é a incapacidade seletiva de ligar os pontos. Um levantamento do site Congresso em Foco mostra que os estados onde Jair Bolsonaro teve maior votação no primeiro turno das eleições presidenciais em 2018 são os que hoje apresentam as maiores taxas de mortalidade por Covid-19. Amazonas, Rondônia e Mato Grosso puxam a fila. Na história que pode começar a ser contada na CPI, a conexão entre falas e gestos do presidente e o relaxamento das medidas de contenção de danos, seguida pelo aumento de internações e número de mortes, será um ponto crucial para entender como chegamos até aqui. Bolsonaro é a peça-chave, mas não conseguiria o que conseguiu sem cúmplices. A imagem segurando um bebê no interior de Goiás é um dos muitos avanços na risca de giz no chão que separava a civilização da completa barbárie. Difícil imaginar que consiga ir ainda mais longe. Na próxima talvez ensine o bebê a fazer arminha com a mão, como já tinha feito com uma criança na era pré-pandemia. Não, isso não é demonstração de afeto. Isso é sadismo na mais alta voltagem. Conforme o governo e a risca de giz avançam, fica mais difícil encontrar qualquer lastro de dignidade ou esperança de salvação entre quem aplaude e/ou naturaliza a situação. A impressão é que a perversidade inerente ao bolsonarismo, hoje sinônimo consagrado no verbete da destruição, tirou das pessoas o que elas tinham de pior e as libertou de circular sem culpas pelo que pensam, sentem e falam. A devoção vem da gratidão. Ao levar a perversidade para outro patamar, Bolsonaro autoriza uma multidão a ostentar em público uma perversidade antes limitada a labirintos interiores e particulares. Para a turma, a morte em larga escala nunca foi o problema. Sempre foi a solução.
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