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Novembro de 2024
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Da simplicidade acolhedora ao luxo e ostentação: Goiânia chega aos 91 anos

Criada com uma mentalidade urbana e com raízes no solo rural, Goiânia nasceu para ser a capital e mudar a visão de Goiás para o Brasil

Foto: Hélio de Oliveira/ Secult
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Cine Teatro Goiânia - Goiás

24 outubro, 2024

Criada com uma mentalidade urbana e com raízes no solo rural, Goiânia nasceu para reposicionar Goiás como capital, substituir a imagem de um estado atrasado e simbolizar o moderno, segundo historiadores. Nesta quinta-feira (24), ao completar 91 anos, a cidade exala versatilidade. Nas ruas, a simplicidade acolhedora dos goianienses se complementa com o luxo ostentação que destaca a capital nacionalmente. “Goiânia é uma capital que mescla o urbano com o rural, o campo com a cidade, a tradição com a modernidade, o nacional com o regional, o sertão com o litoral. O habitante da cidade tem uma conexão muito forte com essas duas dimensões”, explicou o historiador Nasr Fayad Chaul. A identidade do goianiense reflete bem a fusão entre tradição e modernidade, muitas vezes impulsionada pelo agronegócio. De um lado, há listas de espera para a compra de carros de luxo, joias e mansões; de outro, famílias que mantêm tradições, como as pamonhadas, e se reúnem para prosear na porta de casa no fim da tarde. Nesta reportagem, mergulhe na versatilidade da capital e conheça a quase centenária Goiânia.

Criada para desconstruir
Goiânia foi projetada por Pedro Ludovico na década de 1930 para integrar Goiás ao projeto nacionalista do governo Vargas. Para o historiador Nasr Fayad Chaul, a capital foi criada para contrastar com a antiga capital, cidade de Goiás, que era dominada pelo coronelismo e vista como isolada e atrasada. Pedro Ludovico, então, usou seu conhecimento para desconstruir essa imagem, trazendo uma nova goianidade que se opunha ao processo histórico e à visão negativa do estado. Inaugurada em 1942, Goiânia incorporou influências culturais francesas e britânicas, adotando o estilo Art Déco, com avenidas que convergiam para o centro de poder, refletindo o Estado Novo, segundo Chaul. 

Foto: Kasane Comunicação 360/DivulgaçãoRooftops em prédios residenciais em Goiânia, Goiás — Foto: Kasane Comunicação 360/DivulgaçãoRooftops em prédios residenciais em Goiânia -  Goiás

Moderna com relação ao seu passado histórico cravado no interior. Foi assim que Chaul descreveu o perfil da capital. Mesclando o urbano com o rural, Goiânia tornou-se uma capital dicotômica. Para formar a identidade goianiense, foi necessário unir tradição e modernidade. “Goiânia gestou as maiores duplas sertanejas, ao mesmo tempo em que tem um rock de garagem que extrapolou as fronteiras do país. Ela tem as tradições da sua Pecuária, mas também tem a [companhia de dança] Quasar, demonstrando essas extremidades que são fascinantes para estudar o processo cultural da cidade”, ponderou Chaul. Além da cultura, o historiador destacou o forte vínculo de Goiânia com o agronegócio. “É uma capital moderna, mas extremamente conservadora. O goianiense é cordial e receptivo, porém, ao mesmo tempo, muito apegado às suas raízes. É uma capital cosmopolita de internet e currais”, observou. Para Chaul, Goiânia apresenta um contraste entre o Art Déco edificado no início da capital e, ao seu redor, muitas casas que ainda simbolizam o ambiente rural. Esse misto dá ao goianiense uma aparente duplicidade, mas também uma dialética importante. “O goianiense que vai ao show de Paul McCartney ou de rock pesado não difere muito daquele que vai aos grandes shows sertanejos. Ele consegue ter um pé em cada lado”, brincou o historiador.

Do mercado popular ao luxo
Goiânia é uma cidade versátil, capaz de abrigar tanto o mercado de luxo quanto o popular. Essa diversidade reflete o perfil do consumidor goianiense, onde ambas as tendências coexistem e se influenciam mutuamente, segundo Hélia Gonçalves, superintendente executiva da Câmara de Dirigentes Lojistas de Goiânia (CDL), que observa esses dois extremos do mercado. “O mercado de luxo está muito ligado ao status e ao prestígio. Já o mercado popular tem outros valores em foco, atendendo a uma demanda do consumo brasileiro, onde as promoções são usadas para atrair um consumidor cada vez mais exigente”, explicou Hélia. Dados da CDL Goiânia mostram que o consumidor local valoriza status e prestígio, o que explica o crescimento de lojas voltadas ao comércio de luxo na capital, segundo Hélia Gonçalves. Um exemplo claro é a loja de uma das marcas de carros mais renomadas do mundo, a Porsche. Em Goiânia, há fila de espera para adquirir os modelos, que podem custar a partir de R$ 900 mil. “A Porsche trabalha com mais demanda do que oferta, por um motivo muito simples: os carros são feitos sob encomenda. Aqui, o cliente pode montar o carro do seu jeito. A maioria dos veículos que recebemos já chega vendida. Temos uma fila de espera que pode ultrapassar um ano, dependendo do modelo”, explicou Roberto Cury, diretor de operações da Eurobike. Outro mercado que vem crescendo e posicionando Goiânia em destaque nacional é o comércio de joias e relógios de luxo. Em um dos shoppings mais renomados da cidade, entre diversas lojas de grifes internacionais, uma em particular se sobressai: a venda de relógios que podem chegar a R$ 600 mil. Este estabelecimento consolidou-se no mercado exclusivo goianiense. “Há pessoas que esperam entre 4 e 6 anos por algumas peças. A demanda mundial é muito grande, e a marca distribui uma quantidade limitada para o mundo todo. O produto que está em espera aqui, também está em lista de espera no resto do planeta. Representamos marcas globais da mesma forma que as lojas de Paris, Hong Kong e Nova York. Estar em Goiânia não nos deixa atrás. Não é preciso viajar para ver o que está acontecendo lá fora, porque já está acontecendo aqui. Isso coloca Goiânia no mesmo patamar de qualquer outra cidade,” explicou Flávio Lima, proprietário da joalheria Danglar. Além do crescimento do mercado de luxo, Flávio também observou mudanças no perfil do consumidor goiano. Herdeiro de uma tradição familiar de joalheiros com mais de 60 anos no mercado, ele aponta que cada vez mais jovens estão investindo em joias e produtos de luxo. Esse aumento, segundo ele, ocorreu após a pandemia. Outra característica que destacou Goiânia foi a receptividade calorosa do povo, algo que faz diferença nesse segmento. Para estreitar os laços com os clientes, as lojas de luxo focam em experiências exclusivas. “O goiano tem um jeito acolhedor. O relacionamento é o nosso forte. As lojas de luxo em Goiânia sabem disso. Atendemos clientes que viajam o mundo e, se não oferecermos algo diferente, seremos apenas mais uma loja. O que nos diferencia é o atendimento exclusivo, já que o produto você encontra em qualquer lugar,” acrescentou Flávio. Além de carros e joias, o mercado de luxo goianiense também se destaca na alta gastronomia. Com restaurantes situados em rooftops, chefs premiados e uma variedade de opções, os turistas e moradores da capital têm à disposição uma rica experiência culinária. Um exemplo é o Nino Cucina e o Giulietta, estabelecimentos que vieram de São Paulo e se instalaram em Goiânia. “O grupo percebeu que Goiânia oferece oportunidades para a alta gastronomia. Por isso, decidimos expandir e trazer o Nino Cucina e o Giulietta para cá, impulsionados pelo crescimento do mercado imobiliário e do agronegócio,” explicou Vinícius Leite, sócio do grupo Alife Nino. Com um cardápio assinado por um chef com estrela Michelin e localizado em frente ao famoso Parque Vaca Brava, o restaurante precisou se adaptar para agradar ao público local e se diferenciar de sua matriz em São Paulo. “O público goiano tem algumas peculiaridades, inclusive na questão da rotatividade. Em São Paulo, as pessoas costumam circular mais pelos restaurantes, enquanto em Goiânia elas tendem a ficar no local por muito mais tempo. Além disso, introduzimos o cardápio executivo para nos ajustarmos ao perfil da cidade,” concluiu Vinícius. No mercado popular, a tendência da exclusividade também é adaptada. Em bairros residenciais de Goiânia, é comum encontrar moradores que oferecem serviços personalizados, voltados para as necessidades de cada cliente. A costureira Cristiane Silva é uma dessas comerciantes. Em entrevista ao g1, ela contou que encontrou na costura um meio de subsistência após perder a mãe na adolescência e, anos depois, o marido.

“Seja no luxo ou no popular, é preciso entregar um bom trabalho. Um serviço de qualidade, no horário combinado, para que o cliente receba sua peça bem cuidada e entregue com perfeição”, disse Cristiane.

Tradição
A receptividade do goianiense também se reflete em suas tradições populares. Mais uma vez, as características vindas do campo tomam a cidade e reúnem famílias. Um evento familiar, quase unânime em agradar aos gostos, é a tradicional pamonhada. Desde o momento de descascar o milho até a panela, os familiares se juntam para conversar e saborear essa delícia goiana. “Casa cheia é sinal de amor e união. Nada melhor que a pamonhada. Como a pamonha demora um dia inteiro para ficar pronta, é a reunião que a família tem. As brincadeiras, a comilança, as fotos, as lembranças... isso é o melhor que fica da pamonhada. Começamos essa tradição há 40 anos e, até hoje, pelo menos uma vez por ano, nos reunimos para fazer a Pamonhada Borges”, contou Vivi Vaz. A tradição foi passada a Vivi por sua mãe, hoje com 77 anos, e já está sendo transmitida aos filhos, que continuam repassando-a aos descendentes. O cuidado com cada detalhe, desde a escolha da massa de milho, também é comum em outros lares goianos. Selma Stival, por exemplo, também reúne a família para confraternizar enquanto produzem deliciosas pamonhas. “É muito divertido encontrar a família, e o processo de fazer a pamonha é igualmente prazeroso. É o momento em que colocamos as conversas em dia. Hoje em dia, já compramos a massa ralada, mas o momento ainda é muito agradável, e aquele cheirinho da pamonha cozinhando não tem igual”, relatou Selma. O aroma da pamonha cozinhando atrai não só Selma e sua família, mas também muitos goianienses. Quando o assunto é comida boa, o goiano sabe o que diz. Em Goiânia, restaurantes tradicionais, com décadas de história, preservam a tradição e o carinho de seus clientes. No Setor Central, desde 1977, o Restaurante Popular é um desses exemplos. “Nossa comida é simples, humilde e saborosa. Temos uma relação próxima com nossos clientes. Sabemos o que eles gostam, e eles passam a saber sobre nossas vidas. A consideração é mútua. Aqui eu considero todos como uma família”, disse Maria de Lourdes, fundadora do restaurante, famoso por sua “cozinha de vó”. “É uma comida caseira. É como se você estivesse comendo a comida da sua própria casa”, descreveu Ednamar dos Santos, cliente do restaurante há 40 anos.

Destaque nacional
Enquanto alguns setores se fortalecem, outros crescem a ponto de destacar Goiânia nacionalmente. O principal exemplo é o mercado imobiliário. Em 2023, o setor alcançou o maior volume de vendas de sua série histórica, acumulando R$ 6 bilhões e posicionando-se como o terceiro maior mercado do país, segundo a Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Goiás (Ademi-GO). Uma pesquisa da Ademi-GO indicou que os primeiros seis meses de 2024 registraram um aumento de 14% no número de unidades vendidas na capital. Mantida essa tendência, o volume de vendas em 2024 poderá atingir R$ 6,5 bilhões, superando os resultados do ano anterior. Felipe Melazzo Carvalho, presidente da Ademi-GO, destacou que as pesquisas também revelaram um aumento no consumo de imóveis de médio e alto padrão. Em 2023, mais de 10 mil unidades desse tipo foram lançadas, e o cenário continua favorável em 2024. No mesmo ano, Goiânia ficou atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro em número de unidades comercializadas. “O consumo dessas unidades foi expressivo. Além do lançamento de novas unidades, houve a comercialização do estoque existente. Esse ‘boom’ começou a ser percebido um pouco antes da pandemia, mas foi durante 2020 que observamos o maior crescimento. A pandemia trouxe a necessidade das pessoas buscarem novos espaços”, analisou Felipe Melazzo. Ediberto Jardim, corretor de imóveis há 20 anos, acompanhou de perto o crescimento do mercado na capital, especialmente a demanda por imóveis de luxo, cada vez mais exclusivos e tecnológicos, atraindo investidores de várias regiões do país. “Temos muitos investidores de Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. O perfil do cliente de alto padrão busca, em primeiro lugar, segurança, tecnologia e localização. Depois, área verde”, explicou Ediberto.

Comércio tradicional
Dados do Governo Federal revelam que Goiás possui atualmente mais de 880 mil microempreendedores individuais (MEIs). Entre eles, destacam-se aqueles que atuam em segmentos tradicionais, como costureiras, feirantes e cabeleireiros. Uma característica marcante entre esses pequenos comerciantes é o cuidado especial no atendimento ao cliente. “A nossa relação com o cliente é mais próxima, oferecendo um atendimento bastante humanizado. Diferente do mercado de luxo, nós trabalhamos diretamente com o consumidor final. No mercado de luxo, a peça já está pronta, desenvolvida por um estilista. No nosso ateliê, o cliente participa de todo o processo e pode opinar,” explicou Izael Ferreira, sócio de Cristiane Silva no Cris Atelier. Em entrevista ao g1, Cristiane, conhecida carinhosamente como “Cris”, comentou sobre a importância do envolvimento do cliente em cada etapa da criação das peças. “Junto com o cliente, pensamos toda a produção. Eu sugiro, questiono, fazemos provas, e sempre ouço as opiniões. Diferente do que ocorre em uma produção em larga escala, esse contato mais íntimo é muito gratificante. Às vezes, você não sabe como o caimento ficará até que o cliente prova. Ele também tem todo o direito de exigir e colaborar no processo,” ressaltou Cristiane. A alguns quilômetros do ateliê de Cris, outro goiano encanta os moradores da capital. Valdivino de Paula Estanistau, conhecido como o "Rei das Frutas", trabalha há 70 anos no Mercado Municipal de Goiânia. Ao ser perguntado sobre seu amor pela cidade, Valdivino não economizou elogios. “Eu adoro morar em Goiânia. Já recebi convites para sair várias vezes, mas nunca quis. E nem penso em sair. Goiânia é uma cidade modesta, mas em constante crescimento. É cordial, tem de tudo. Minha paixão por Goiânia é antiga, e sempre fui apaixonado por Campininha também,” brincou o comerciante. Próximo à banca do Rei das Frutas, uma tradicional loja de doces também faz sucesso no Mercado Municipal desde 1950. O local atrai clientes de diversas partes da cidade com uma variedade de doces que remetem à infância de muitos goianos. “Oferecemos doces tradicionais de Goiás, doces caseiros e cristalizados, como aqueles feitos de frutas. São doces que não se vê mais hoje em dia, mas que fazem parte da história de Goiás e Goiânia,” explicou Vander Aleixo, vendedor no comércio.

Coexistência dos mercados
Para a superintendente executiva da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Goiânia, Hélia Gonçalves, o comércio popular e o de luxo se influenciam mutuamente, criando uma tendência de hibridização entre os dois mercados. “O mercado de luxo está cada vez mais criando linhas acessíveis com a intenção de alcançar novos públicos. Essas linhas têm um foco maior em sustentabilidade e adaptabilidade, o que atrai consumidores com tendências mais voltadas para o mercado popular,” explicou Hélia. Ela destacou que o consumidor moderno está se tornando mais exigente, buscando não apenas a comodidade na compra, mas também uma experiência personalizada. Esse comportamento cria um desafio para as empresas, que precisam se capacitar constantemente e investir em tecnologia para acompanhar essas demandas.

Ares de interior

Mesmo com uma população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em quase 1,5 milhão de habitantes em 2024, o ar de cidade do interior se mantém firme em diversos setores de Goiânia. Em bairros residenciais, é comum encontrar moradores na porta de casa no fim da tarde. Durante uma caminhada pelas ruas do Jardim América, a reportagem encontrou Maria Anastácia, de 89 anos, natural do Pará, que escolheu Goiânia para viver. “Eu gosto de ficar aqui sentada porque moro sozinha. Aqui passa uma amiga, para, e a gente fica conversando. Outra vem, para também, e a gente continua conversando. É assim. É desse jeito. Graças a Deus, são muito amigas”, brincou Maria Anastácia. Algumas quadras abaixo, outra moradora parou a poda de uma planta na calçada para contar sua história com a cidade. Nascida em Santa Catarina, Iolanda Gozic já morou em Brasília, mas vive na capital goiana desde 1978. Acolhida pela comunidade, ela afirmou que foi bem recebida pelos goianienses. “A vizinhança tem hábitos acolhedores. A gente trabalha aqui na igreja, participa das festas e forma um círculo de amizade muito grande”, descreveu Iolanda. Além dos moradores que se mudaram de outras cidades para viver em Goiânia, há os goianienses “raiz”, que nunca arredaram o pé da capital. A economista e dona de casa Deuslene Cândida é uma delas. “A gente faz questão de ficar na rua conversando com as minhas vizinhas. Vamos a uma feira, paramos e conversamos. Se a gente para um carro, fica conversando até dentro do carro”, contou a moradora. As prosas entre vizinhos formam as tradições goianienses, que continuam ocupando um espaço importante na vida dos moradores, em paralelo ao crescimento do mercado de luxo. Pamonhadas, jantinhas e botecos se mantêm firmes, com um público fiel que faz da capital uma cidade plural. Portanto, como analisou Nasr Fayad Chaul, a cidade deve equilibrar essa dualidade entre o moderno e o tradicional.