Terça-feira, 03 de
Dezembro de 2024
Direito & Justiça

Investigação

‘Golpe do césio-137’: coronel da PM e bombeiro dizem não saber que exames para conseguir benefícios eram falsos

Polícia diz que, segundo os suspeitos, material coletado seria encaminhado a laboratório nos Estados Unidos

Foto: Reprodução/Fantástico
post
Fantástico - Césio 137 / Goiânia - Goiás

14 outubro, 2024

Uma investigação da Polícia Civil apura fraudes em benefícios pagos pelo Governo de Goiás às vítimas do acidente com o césio-137. Ao Fantástico, o procurador-geral de Anápolis Carlos Alberto Fonseca e dois militares aposentados (um coronel da PM e tenente-coronel dos Bombeiros) que são investigados suspeitos de participar da fraude alegaram que não sabiam do esquema. Eles ainda apontaram a responsabilidade para as advogadas que estavam à frente das ações. “Fui incauto ao não pesquisar a atuação dessa advogada (Ana Laura Pereira) mais a fundo. Ela não deu ciência para nós do resultado dos exames e não fomos no processo olhar. O que é falta de cautela nossa, mas não ingenuidade", argumentou o procurador. Duas advogadas foram presas suspeitas de envolvimento no esquema: Ana Laura Pereira Marques, que está em prisão domiciliar, e Gabriela Nunes Silva, que foi solta e agora responde em liberdade. Ao Fantástico, a defesa de Ana Laura disse que se manifestará somente em juízo. Já Jonadabe Almeida, advogado de Gabriela, disse que ela não tinha conhecimento dos documentos e que não participou do esquema. O delegado Leonardo Dias Pires explicou que os suspeitos diziam que o material coletado das supostas vítimas do césio seria encaminhado a um laboratório localizado nos Estados Unidos para que os exames fossem feitos. “Porque, em tese, não haveria nenhum laboratório localizado no Brasil capaz de fazer esses exames”, disse. Um PM reformado também foi preso, acusado de captar clientes para as advogadas; outros cinco advogados estão sendo investigados. Os nomes deles não foram divulgados. Por isso, o g1 não conseguiu localizar a defesa deles para um posicionamento até a última atualização desta reportagem.

Investigados dizem não saber de esquema
Um dos investigados é o atual procurador-geral de Anápolis, Carlos Alberto Fonseca, que teve uma ação em seu nome protocolada em março deste ano. Ele é capitão da reserva, saiu da Polícia Militar na década de 1990 e atuou como promotor de Justiça por mais de 25 anos. Apesar de dizer que não trabalhou em Goiânia na época do acidente, o documento da ação anexada no nome do procurador diz que ele teria atuado “em várias frentes de trabalho do acidente de 1987”. Ele explicou que dois anos após o acidente esteve lotado no policiamento do depósito de dejetos do acidente que é localizado em Abadia. Esse material, no entanto, está isolado e enterrado em duas caixas de concreto para evitar vazamentos. Na ação protocolada no nome do procurador há exames que apontam uma dosagem de material radiativo acima dos valores de referência no cabelo dele. Ao Fantástico, ele justificou que passou por cirurgias para retirada de cistos, que não eram cancerígenos, mas afirmou que nunca se consultou com o médico que assina o relatório na ação judicial, nem esteve na clínica em que o especialista trabalha. Após a entrevista com o Fantástico, o procurador comunicou à Justiça a desistência da ação. Outro investigado é o do tenente-coronel dos bombeiros de Goiás Sebastião Otávio do Nascimento, que afirmou ter trabalhado no depósito de dejetos do acidente e que tem câncer. Na ação protocolada no nome dele, um suposto exame apontou a presença do césio acima do normal no organismo dele. No entanto, segundo apurado pelo Fantástico, as amostras de cabelo usadas nesse suposto teste nunca saíram do escritório da advogada Ana Laura. “De forma alguma [sabia que seria falsificado]. Fiz a coleta e foi deixado lá. A enfermeira que fez a coleta. Não vou desistir da ação. No meu entendimento, eu trabalhei no local do césio e tenho direito”, disse Sebastião.
Outro processo fraudulento é do ex-comandante-geral da PM de Tocantins Marielton Francisco dos Santos. A advogada dele também foi a Ana Laura Pereira Marques. Segundo o Fantástico, no processo dele também foram forjados o relatório médico e o teste do cabelo. Ele diz que sofre de uma deficiência hormonal e que faz tratamento há 12 anos. "Eu confiei plenamente nela [Ana Laura]. Foi excesso de confiança. O laudo lá [diz] que eu tenho radioatividade. Se for falso, eu não tenho. É até bom que eu não tenha. Eu já faço o tratamento [contra a deficiência hormonal] há 12 anos. Pode ter ou não relação com o césio. Outra questão é hipertensão, não sei se tem relação também", ele argumenta. O Fantástico explicou que a Justiça concedeu a isenção do imposto de renda ao coronel. Ele disse que chegou a receber mais de R$ 13 mil e que recebeu as duas parcelas recebidas. “Má-fé não houve, isso realmente não houve, foi excesso de confiança", completou.

Operação contra fraudes
Segundo divulgado pelo Fantástico, nos últimos dois a Justiça recebeu mais de 80 ações que pediam a abertura de um processo judicial para a solicitação de isenção do imposto de renda. A maior parte desses processos estaria em nome de policiais militares e bombeiros reformados de Goiás e Tocantins. Ainda segundo os documentos, as justificativas que constavam nos pedidos seria pelo diagnóstico de doenças graves por contaminação do césio-137. No entanto, segundo as investigações, essa documentação era falsificada.

"Havia ali falsidade material. Falsidade ideológica. Ou seja, documentos contra-feitos. Documentos irregulares, fraudados", concluiu o procurador-geral Rafael Arruda. O advogado Márcio Barbosa de Andrade, que representa a clínica que supostamente teria feito os relatórios médicos presentes nas ações judiciais, exemplificou elementos que atestam essa falsidade nos documentos anexados nos processos. Pelo menos 18 processos contam com relatórios forjados da mesma clínica, conforme informado pelo Fantástico. "O logotipo nunca foi da empresa, não existe esse tipo de formato de documento. A assinatura dos médicos são digitais, então essa assinatura colocada com carimbo não é a real, verdadeira", detalhou.

Acidente com o césio-137
O maior acidente radiológico do mundo começou quando, no dia 13 de setembro de 1987, dois catadores de recicláveis acharam um aparelho de radioterapia abandonado, desmontaram e o venderam a um ferro-velho de Goiânia. Eles não tinham noção de que se tratava do césio-137. Altamente radioativo, o pó de coloração azul, que ficava no equipamento, causou quatro mortes e contaminou, pelo menos, 249 pessoas. Sete pontos de Goiânia foram os mais atingidos pela contaminação. Evacuados na época, a maioria desses locais está ocupada atualmente. Grande parte dos moradores ainda vive na vizinhança, e se recorda da tragédia quase que diariamente. Alguns ainda temem ser contaminados. No entanto, especialistas garantem que não há risco. O césio-137 é um material radioativo que emite raios gama, radiação ionizante muito perigosa e que pode penetrar profundamente no corpo. Os raios gama são o tipo mais energético e perigoso de radiação ionizante, que pode retirar elétrons dos átomos de organismos vivos, danificando células e DNA. A quantidade de radiação que a cápsula emite é de 19 gigabecquerels, o equivalente a cerca de dez raios-X por hora,