Itirapina (SP) - Há uma semana, Jéssica Conduta, de 29 anos, e o marido têm tido noites insones. Eles vivem um período de grande preocupação com a saúde do filho caçula. "A gente não tem dormido. Quando não sou eu, é o meu marido que fica cuidando dele, zelando e aferindo a temperatura para ver se ele está com febre", diz a mãe à BBC News Brasil. O temor constante em relação ao filho, de um ano e dez meses, é justificado por um episódio que aconteceu no início da semana passada. O garoto, assim como outras 27 crianças, foi vacinado indevidamente contra a covid-19 em Itirapina, no interior de São Paulo, em 13 de abril. As crianças deveriam ser vacinadas contra a gripe, mas receberam uma dose da CoronaVac, imunizante contra a covid-19 que até o momento não deve ser aplicado em menores de 18 anos. Na cidade, também foram vacinados erroneamente 18 adultos, entre eles duas gestantes. Um dia após o erro em Itirapina, situação semelhante foi registrada em outra cidade de São Paulo. Em Diadema, cinco crianças foram vacinadas indevidamente com a CoronaVac. Após as imunizações erradas, o Instituto Butantan, que produz a CoronaVac no Brasil, informou que não há, até o momento, conclusões científicas de segurança ou eficácia da vacina em crianças ou em gestantes. Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, os imunizantes não devem trazer riscos para as crianças. O principal argumento deles é que outras vacinas, semelhantes às que são aplicadas contra o novo coronavírus, são comprovadamente seguras e eficazes nos mais novos. Os estudos sobre a segurança e eficácia dos imunizantes contra a covid-19 em crianças e adolescentes ainda estão em andamento. Para as mães das crianças que receberam uma dose da CoronaVac em Itirapina, a imunização indevida dos pequenos tem causado muita preocupação. Elas acreditam que os filhos não apresentarão problemas de saúde, mas apontam que a atual recomendação de que os mais novos não sejam vacinados causa insegurança. "Cada dia que o meu filho passa sem reação é uma vitória", diz Jéssica. Entre os familiares das crianças vacinadas em Itirapina, qualquer situação diferente, que em outro cenário seria considerada comum, pode virar motivo de muita preocupação. Em um grupo de WhatsApp no qual participam oito mães das crianças imunizadas na cidade, há relatos de filhos com resfriado, alergia na pele ou até falta de apetite. Qualquer detalhe que consideram diferente é compartilhado entre elas. O filho de quatro anos da faxineira Milena Ribeiro, de 29 anos, também foi imunizado contra a covid-19 em Itirapina. Quando ela notou uma afta na boca da criança, na última segunda-feira (19/4), logo cogitou que pudesse ser uma reação à vacina. "Mandei mensagem para a turma da Vigilância Sanitária da cidade, mas acredito que essa afta surgiu porque ele pode estar com imunidade baixa, não pela vacina", diz Milena à BBC News Brasil. Segundo a Secretaria de Saúde de Itirapina, até o momento não foi registrado nenhuma situação anormal entre os vacinados que possa ser relacionada à imunização contra a covid-19. Também não há, até o momento, registros de complicações preocupantes que possam ser ligadas à CoronaVac entre as crianças imunizadas em Diadema.
46 vacinas erradas
Era tarde de 13 de abril quando adultos e crianças, entre um e cinco anos, foram a uma escola municipal de Itirapina para serem vacinados contra a gripe, mas receberam uma dose de CoronaVac. No dia anterior, havia começado a imunização contra a gripe no país. Entre as prioridades no início dessa vacinação estão crianças entre seis meses e menores de seis anos, gestantes, puérperas (mães que acabaram de dar à luz), indígenas e trabalhadores da saúde. A campanha de imunização contra o vírus influenza, causador da gripe, teve início em meio à vacinação contra a covid-19 em todo o país. Para evitar confusões, a Prefeitura de Itirapina definiu que a Coronavac seria aplicada em um posto de saúde, enquanto a vacina contra a gripe seria em uma escola pública. Os dois imunizantes têm, ao menos, duas diferenças claras nos rótulos de seus frascos: os destaques por escrito sobre a finalidade de cada vacina e as cores, verde contra a gripe e laranja contra a covid-19. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Itirapina, uma técnica de enfermagem errou ao separar a caixa contendo os frascos dos imunizantes e levou doses de CoronaVac para o local de vacinação contra a gripe.
Milena e o filho de quatro anos posam para foto
Milena e o único filho, de quatro anos. Garoto foi uma das 28 crianças vacinadas indevidamente no interior de São Paulo
Segundo a Prefeitura de Itirapina, a profissional de saúde lamentou a situação e alegou que não percebeu que pegou a caixa errada. Ela foi afastada de suas funções. A Prefeitura afirma que está apurando as responsabilidades sobre a falha. O caso é alvo de investigação policial, após denúncias de familiares de crianças imunizadas indevidamente. A Secretaria de Saúde do Município relatou, em nota, que o caso foi descoberto por servidores no dia seguinte à imunização errada, quando notaram que faltavam 46 doses da CoronaVac no estoque. Em 15 de abril, a Vigilância Epidemiológica da região informou aos adultos imunizados e aos responsáveis pelas crianças sobre o erro. A Prefeitura do Município afirma que consultou médicos especialistas que apontaram que a imunização não traz riscos para a saúde das crianças ou das gestantes. Segundo a Prefeitura, todas as providências foram tomadas para a segurança dos vacinados e uma equipe médica foi disponibilizada para avaliação e orientação por 14 dias.
A imunização em Diadema
Em Diadema, na Grande São Paulo, o erro nas imunizações ocorreu na Unidade Básica de Saúde (UBS) Jardim das Nações. Em 14 de abril, cinco crianças, entre sete meses e quatro anos, foram vacinadas no local com a CoronaVac. A Secretaria de Saúde de Diadema avaliou o caso como uma situação isolada e argumentou que as aplicações de vacinas de covid-19 e da gripe são feitas em salas separadas para evitar confusões no fluxo dos pacientes. A pasta municipal alegou que a falha na unidade de saúde ocorreu em razão de um descuido de duas técnicas de enfermagem que teriam pegado a caixa errada das vacinas durante a troca de turnos. De acordo com a pasta, as duas servidoras foram afastadas e foi aberto um processo administrativo para apurar possíveis irregularidades sobre a conduta delas e sobre o armazenamento das doses dos imunizantes. Assim como em Itirapina, o caso em Diadema também está sendo investigado pela polícia local, após denúncia de familiares das crianças. De acordo com a Secretaria de Saúde de Diadema, uma pediatra faz o acompanhamento diário do estado de saúde das crianças vacinadas com a CoronaVac. Jéssica e os dois filhos. Ela e outras mães participam de grupo de WhatsApp no qual relatam a rotina com filhos vacinados indevidamente contra a covid-19
Em entrevista ao jornal Agora, na sexta-feira passada (16/04), o auxiliar de mecânico Agnaldo Ribeiro da Silva, de 49 anos, disse que levou o filho para ser vacinado na UBS Jardim das Nações durante o período da manhã. Horas mais tarde, segundo ele, o garoto de quatro anos vomitou e ficou sonolento. No dia seguinte, conforme o pai, o menino estava melhor e sem nenhum sintoma. "É um absurdo isso acontecer e, ainda mais, com cinco crianças em horários diferentes. Toda nossa família está abalada, porque um erro assim é uma coisa muito grave. Desde este dia não consigo mais ir trabalhar, com medo de que alguma coisa possa acontecer com o meu menino", declarou Silva ao jornal Agora.
'Fiquei horrorizada'
Quando soube do erro das vacinas em Itirapina, Jéssica Conduta afirma que chorou. "Eu fiquei horrorizada e com muito medo. É como se nós, pais, não tivéssemos feito nosso papel de cuidar e proteger", diz. Ela, que é assistente de departamento pessoal, estava no trabalho quando foi avisada pela sogra sobre o erro. "Foi a minha sogra que levou o meu filho para vacinar. Por isso, primeiro avisaram para ela, que ficou muito nervosa e me ligou para contar", relata. "Depois, eu liguei para a pediatra do meu filho e expliquei a situação. Ela me disse que os riscos são pequenos e falou para a gente ficar acompanhando ele", diz. Segundo Jéssica, o filho não apresentou nenhum tipo de problema de saúde desde a vacinação. Ela afirma que até se surpreendeu com a reação dele após ser imunizado. "Sempre que ele toma alguma vacina, fica com febre ou resfriado, mas dessa vez não teve nada", comenta. "Pode ser que não aconteça nada com nossos filhos, mas a gente não sabe. Estamos vivendo com medo. Quando vou trabalhar, tento dar uma apagada nesse assunto. Mas quando as pessoas perguntam se o meu filho está bem, dá vontade de chorar", relata Jéssica. Desde a vacinação, a única reação diferente que o filho de Milena Ribeiro teve foi a afta, que a mãe está tratando com medicamentos. Apesar de afirmar que agora está um pouco mais tranquila, ela relembra o susto ao saber da vacinação errada. "Eu fiquei arrasada", diz Milena. "Isso foi um erro que não vem só da enfermeira. Estão culpando somente a coitada. Ela pode ter errado por não ter notado a diferença entre os rótulos, mas pessoas com cargos acima dela também erraram. Agora só cai nas costas dela, que tinha que aplicar muitas vacinas sozinha e isso talvez exigisse muito dela", declara a faxineira. Milena afirma que esperava mais apoio por parte da Prefeitura. "Falta assistência e preocupação maior, porque foi uma coisa grave. Deveriam deixar um pediatra à nossa disposição para acompanhar as crianças, mas não está sendo assim. O que está sendo feito é um acompanhamento diário pelo WhatsApp, para questionar como as crianças estão". A faxineira critica também o atendimento inicial que as famílias receberam logo que foram informadas sobre o erro. "A pediatra disse que a gente tinha ganhado na loteria porque nossos filhos estavam imunes. Ela falou que estava tudo certo, que não ia acontecer nada", comenta. Milena afirma que os responsáveis pelas crianças perceberam, posteriormente, que não havia como a médica passar tanta segurança, em razão da falta de estudos conclusivos sobre o tema. No sábado (17/4), grande parte das crianças imunizadas indevidamente em Itirapina passaram por testes sorológicos para avaliar se a vacina induziu a produção de anticorpos contra a covid-19. Os exames foram encaminhados ao Instituto Adolfo Lutz. Ainda não há prazo para que os resultados sejam informados aos familiares. "O que eu espero agora é que não dê nada com o meu filho. Me aconselharam a ficar atenta a ele por 15 dias. A gente fica com o coração na mão, porque não sabe o que vai acontecer. Tem sido dias difíceis. Quero que isso passe logo", diz Milena.
Especialistas não acreditam em problemas graves
Médicos ouvidos pela reportagem avaliam que são muito pequenas as chances de as crianças imunizadas erroneamente terem problemas. "O erro é grave. Não podemos usar medicamentos ou vacinas onde os trabalhos científicos não terminaram. Não podemos saber se os efeitos adversos nessas populações são semelhantes ou diferentes dos encontrados em adultos e idosos. Também não sabemos ainda qual é a dose, intervalo e imunogenicidade das vacinas nessa faixa etária", diz o pediatra e infectologista pediátrico Márcio Nehab, do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Nehab destaca que os estudos em crianças já começaram em vacinas contra a covid-19, como a CoronaVac e a de Oxford com a farmacêutica AstraZeneca — as duas que são aplicadas no Brasil atualmente. "Até o momento, não houve problemas em crianças nesses estudos", destaca. Para o infectologista Alexandre Naime, chefe de Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu (SP), é pouco provável que as vacinas contra a covid-19 não sejam indicadas para os mais novos. "Provavelmente essas vacinas têm pouco efeito adverso nas crianças. Os estudos estão em andamento, então não temos resultados ainda. Porém, provavelmente não (possui efeitos adversos) porque são plataformas seguras, que também são usadas para várias vacinas do calendário brasileiro", declara o infectologista. "Na verdade, crianças têm até uma resposta imunológica um pouco melhor que os adultos para vacinas de plataforma de vírus inativado, como a CoronaVac", acrescenta. Naime explica que a vacinação entre as crianças somente deve ser autorizada no mundo após a conclusão de testes clínicos com os mais novos. A medida é fundamental para avaliar o desempenho de cada imunizante entre esse grupo. "Isso só não foi estudado antes porque crianças, geralmente, têm covid-19 leve e não evolui para a forma mais grave. Óbvio que você vai estudar uma vacina primeiro para a população inicial, que tem evolução mais grave da doença do que as crianças", diz ele. Apesar de não acreditar que haverá problemas para as crianças imunizadas na semana passada contra a covid-19 em cidades de São Paulo, Nehab ressalta a necessidade de que órgãos responsáveis, como o Ministério da Saúde e autoridades locais, acompanhem de perto a situação. Ele afirma que é fundamental "apurar possíveis prejuízos às crianças que foram vacinadas de forma errada". Pelo mundo, pesquisas de vacinas contra a covid-19 em crianças têm avançado cada vez mais nos últimos meses. Especialistas avaliam que incluir os mais novos nos programas de imunização é uma preocupação que merece destaque no atual cenário, porque esse público também pode transmitir o novo coronavírus e dificultar o combate à pandemia. Em países com as campanhas de imunização avançadas, como os Estados Unidos, o tema já se tornou alvo de debates. Em relação às duas gestantes vacinadas em Itirapina, os médicos frisam que o próprio Ministério da Saúde passou, recentemente, a recomendar a vacinação de mulheres grávidas contra a covid-19. As bulas das vacinas não recomendam que elas sejam aplicadas sem orientação médica em gestantes e lactantes, pois não há testes definitivos desses imunizantes nesses grupos. Apesar da falta de estudos conclusivos no momento, uma nota técnica do Ministério da Saúde aponta que pesquisas em animais não mostraram riscos de o imunizante causar danos ao embrião ou feto. Segundo nota técnica da pasta, a imunização de gestantes no atual momento trata-se de um posicionamento de urgência sobre essa população "devido ao maior risco de complicações que elas e seus bebês enfrentam quando infectados pelo vírus", diz o Ministério da Saúde, que pontua que essa situação traz maior probabilidade de parto prematuro. O Instituto Butantan afirmou, em nota, que as vigilâncias municipais devem acompanhar e coletar informações individuais das crianças e das gestantes imunizadas, "solicitando que busquem orientação imediata nos serviços de saúde caso apresentem algum evento adverso". "O Butantan fica à disposição por meio do Serviço de Atendimento ao Consumidor e seu setor de Farmacovigilância, mas a investigação e acompanhamento dos casos compete às vigilâncias municipais", disse o instituto, em nota. O Butantan recomendou que as pessoas vacinadas erroneamente com a CoronaVac esperem 14 dias para que sejam imunizadas contra a gripe. Nos casos das gestantes, aconselhou que haja uma avaliação médica individual para decidir se a segunda dose deverá ser aplicada. Já em relação às crianças, o instituto afirmou que a aplicação da segunda dose do imunizante não é indicada atualmente.
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