Cuiabá (MT) - Nem mesmo o frio inesperado impediu famílias em situação de vulnerabilidade social de enfrentarem a fila pelos ossos, doados pelo açougue Atacadão da Carne, logo pela manhã. Em Cuiabá, capital do Mato Grosso, onde faz 38º quase todos os dias, o frio costuma doer. Mas não tanto quanto a fome. “A barriguinha deles não espera, né? A hora que quer, já viu...”, disse Selma Santana, de 54 anos, na fila com a neta Karine, de 6, antes mesmo das 9 horas. Se o sol é para todos, em Mato Grosso, a terra do bilionário agronegócio, como gostam de gritar por todos os cantos do mundo, a carne é para alguns. Selma, por exemplo, está desempregada e tem 8 netos e dois filhos – o terceiro, caçula, faleceu – para alimentar. Ela ficou sabendo da doação por meio de uma vizinha. “Tem uns dois meses que eu venho. Venho por causa da dificuldade. Não estou trabalhando, tenho um problema sério de coluna, afastada do serviço... aí tem que correr atrás”, conta.Claudiana Italina tem 26 anos, mas já faz parte das 14,8 milhões de pessoas desempregadas no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Motivada pela pandemia da Covid-19, perdeu seu trabalho como babá há dois dias. Com a repercussão nacional do caso, não perdeu a oportunidade de ganhar uma sacolinha com os ossinhos do boi. “Eu pego alimentação para doação, porque lá em casa não tem mistura”, conta. “Mistura” é uma expressão popular para carne ou proteína, um dos principais alimentos que precisam estar em um prato. “A pandemia chegou, e a gente não tem como trabalhar. Fica parado em casa, cuidando das obrigações da gente”, relata. A pandemia da covid-19 arruinou diversas famílias brasileiras. Agora, são 19 milhões de pessoas passando fome, conforme pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Claúdia está grávida de 5 meses – ela já perdeu outros filhos. Inclusive, chegou a pedir doações de roupas, já que o frio a deixou desprevenida e está com dificuldades para montar o enxoval do futuro menino. Enquanto não tem roupa para vestir, a primeira-dama de Mato Grosso, Virgínia Mendes, entregou cestas básicas para as famílias naquela quarta-feira, com uma jaqueta de couro e uma bota Louis Vuitton, avaliada em R$ 11 mil. Só a bota pagaria por 112 cestas básicas, mas preferiu distribuir 400 cestas básicas, itens de limpeza e cobertores por meio da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania (Setasc). Surpreendidas, as famílias se amontoaram para pegar as doações, em um contraste de carrinhos de feiras e de bebês com as viaturas policiais e as Hilux e Toyota SW4 SRX do governo do estado. Com óculos também da Louis Vuitton, de R$ 3,5 mil, aproveitou para alfinetar a Prefeitura de Cuiabá, com quem seu marido, o governador Mauro Mendes (DEM), tem rixa política. “Estamos trabalhando sozinhos”. Já Sueli Batista, de 52 anos, frequenta a fila há bastante tempo para afirmar que nunca apareceu um político por ali. Há dois anos, quando passou em frente ao açougue, pediu pelos restos do boi. Ela conta que, naquela época, em torno de 20 pessoas buscavam pela desossa no local. Moradora do bairro Doutor Fábio, Sueli percorre 3 km a pé com o neto no carrinho pelo menos três vezes na semana, esperando que a porta lateral se abra e um funcionário distribua o osso com resquícios de carne. “Não é que eu estou desempregada, eu recebo um auxílio do governo, mas não dá, né? É muito pouco, meu marido faz só bico, o que a gente ganhar já ajuda”, explica sua condição. Com o salário mínimo que recebe, metade do dinheiro paga a medicação para tratar um glaucoma, já que não consegue retirá-lo gratuitamente pela saúde pública. Sueli conta que, se não for aquela carne que vem no ossinho, não tem proteína no seu prato. “Se faz o ossinho de todo o jeito. Tá difícil comprar carne, porque não está tendo condição não. Estamos comendo mais é ovo e esse ossinho mesmo”.
Doações dos ossos
Com o tumulto das doações das cestas básicas naquele dia, algumas pessoas se aproveitaram para entrar na fila. A dona do açougue, Samara, estava só de olho, já que faz a doação dos ossos há mais de 10 anos. Uma mulher até mesmo saiu de carro após entrar na fila. “Tem gente que vai ali fora, está comprando carne [no açougue] e pergunta se a pode entrar na fila do ossinho. A gente tem até que brecar, porque eles vêm mesmo. Tem muita gente que... Eu não consigo nem falar o que que é. A gente pede até pra eles ajudarem, pra não pegarem de dois, porque não é toda hora que a gente tem”, disse indignada. A iniciativa começou com as pessoas pedindo na porta. Ela relata que com a procura, passaram a administrar a doação, feita toda segunda, quarta e sexta, a partir das 11 horas. Mas tem gente que fica na fila – que subiu para 200 pessoas no último ano – até mais tarde, no sol a pino. Para não causar desperdícios da sua produção, Samara e o marido doam os ossos, mas fazem questão de deixar uma “carninha”. Ela explica que o ossinho vem do corte da dianteira e do contra-filé. A ordem para os açougueiros é não raspar, para deixar o que se chama de “bananinha”. Segundo Samara, essa carne hoje é utilizada em churrascos, e se fosse vender em seu açougue, cobraria R$ 26 reais o kg da bananinha. “A carne da dianteira, que fica um pouquinho, se fosse limpar ela poderia estar vendendo ela a R$ 22, como carne moída aqui. O nosso carinho aqui com eles é deixar essas partes, pra não sair apenas o osso”, explica sobre o processo.
Fogão a lenha
Em sua residência, Sueli mostra como se prepara o osso, que vai em uma panela com caldo. Quando muito, preparado no feijão, batata ou mandioca. Mas naquele dia, para a sua surpresa, ao abrir a sacola de doação do governo, tinha um pedaço de carne congelada. No fogão a lenha do fundo, ainda havia um resto da sopa de ossos do dia anterior. O saquinho costuma render por 3 dias. Ela tem um fogão a gás, mas na falta deste, que já chega a R$ 120, o de lenha quebra o galho. Sueli usou o fogão a lenha, inclusive, porque roubaram o seu botijão. Embora a carne tenha servido por alguns dias, Sueli pontualmente voltou para a fila dos ossos, que são distribuídos às 11 horas.
Brasília
Enquanto a "Vozinha do Osso" espera por mais uma ossada na porta de um açougue em Cuiabá capital do Mato Grosso - terra do bilionário agronegócio, como gostam de gritar por todos os cantos do mundo - deputados federais e Senadores da República, derramam gotas de suor em Brasília, para aprovarem a reforma política e o voto impresso. Este é o Brasil que o povo vive e que alguns parlamentares e gestores publicos ignoram.