Mogi das Cruzes (SP) - Enquanto 2022 não chega, evangélicos de esquerda que integram o movimento da Bancada Evangélica Popular lançaram o Observatório dos Evangélicos na Política, que pretende mostrar que, embora a participação do segmento no Congresso tenha aumentado, ela se distanciou da perspectiva social presente no Evangelho de Jesus Cristo. Com verbetes explicativos, como "terrivelmente evangélico" e "como vota, irmão/irmã", o projeto vai acompanhar o posicionamento de representantes do segmento no Executivo e no Judiciário, assim como o voto de parlamentares em projetos importantes, para demonstrar que a causa dos marginalizados foi abandonada pela maioria deles. O segmento evangélico é um dos pilares de apoio do presidente Jair Bolsonaro, que se aproximou de algumas igrejas e promete indicar um ministro "terrivelmente evangélico" a uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal). Com presença crescente no Brasil, evangélicos de diferentes denominações representavam 31% da população, o segundo maior grupo religioso no país, atrás apenas dos católicos (50%), em dezembro de 2019, segundo o Datafolha. "É preciso observar toda essa movimentação para que, em Cristo e à luz da Palavra, venhamos denunciar todo falso profetismo que tem levado nossos irmãos e irmãs a negar Cristo representado nos milhões de brasileiros que tanto sofrem com as desigualdades sociais", afirma o manifesto da iniciativa. Evangélico e filiado ao PC do B, partido pelo qual disputou três eleições, o ativista Samuel Oliveira, 24, idealizador do projeto, conta que a ideia é atrair colaboradores do meio acadêmico para estruturar a iniciativa, que quer funcionar como um repositório de dados e análises que contribuam para a conscientização política de fiéis. "Não temos a intenção de ser um portal de notícias de evangélicos, mas a nossa ideia é fazer um trabalho acumulativo de dados e que isso possa servir para a compreensão da participação evangélica na política", afirma. Membro da Comunidade Cristã na Zona Leste paulistana, ele desenvolve o projeto ao lado do pastor e teólogo Daniel Santos, 47, e do presbítero e advogado William Carvalho, 33, que também atuam na igreja. Localizada na Vila Formosa, é definida como afirmativa, onde LGBT+ são bem-vindos e o machismo, o racismo e a misoginia são rechaçados. Eles contam que foi a perspectiva de uma teologia em que Deus não é retratado como inquisidor que fez com que deixassem igrejas evangélicas conservadoras para atuar em comunidades progressistas. Com o movimento da bancada e o observatório, o grupo tenta mostrar que o segmento está longe de ter um pensamento homogêneo. "Quando a gente vê algumas lideranças evangélicas, como Silas Malafaia e Edir Macedo, falando em nome dos evangélicos, isso incomoda muito uma parcela, principalmente os progressistas, que não se identificam com as propostas e pautas que são defendidas", afirma Santos. "A gente começou a pensar o observatório em conversa com os organizadores da bancada e a partir da percepção que existia de uma necessidade de ação imediata enquanto não há o pleito eleitoral", acrescenta Carvalho. As informações reunidas pelo grupo serão compiladas no site e nas redes sociais da bancada conforme aparecerem projetos de representantes do meio ou diante de votações relevantes. A ideia é também realizar lives quinzenais. A primeira análise do observatório, feita com base em dados do sistema Infoleg, aponta que na atual legislatura (iniciada em 2019) um quarto dos deputados federais se identifica como evangélicos, ou seja, 119 dos 513 parlamentares da Câmara. Dentre esses representantes, 29% são da Assembleia de Deus, e 18% da Igreja Universal do Reino de Deus. Em relação às votações, o grupo destaca que 93% dos integrantes da bancada votaram a favor da reforma da Previdência e 95% a favor do projeto de lei que permite a compra de vacinas contra a Covid-19 por empresas, chamado de "fura-fila da vacina". Outros dados da legislatura passada mostram que 93% dos evangélicos da Câmara votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff (PT), 86% apoiaram o teto de gastos públicos, 67% disseram sim à reforma trabalhista e 58% rejeitaram a primeira denúncia contra o então presidente Michel Temer (MDB). "Há algumas questões pontuais em que a gente acha que será muito difícil mudar o posicionamento dos congressistas evangélicos, como o aborto e a legalização da maconha, que são temas extremamente sensíveis para o meio evangélico", diz o pastor Daniel, que diz ser pessoalmente favorável a essas pautas. "Ter uma divergência e dificuldade nesses pontos a gente até compreende, porque há questões doutrinárias, mas quando a gente fala de fazer um fura-fila da vacinação a gente não está mais falando de posicionamento doutrinário, mas da valorização da vida. Qual a prioridade? O pobre e o desvalido", acrescenta, fazendo menção ao evangelho. O antropólogo Ronaldo de Almeida, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap com foco no meio evangélico há 30 anos, destaca que há diversas pesquisas acadêmicas sobre o comportamento evangélico na política, como a plataforma Religião e Poder, do ISER (Instituto de Estudos da Religião). A novidade trazida pelo observatório é fazer essa análise do ponto de vista político e militante à esquerda, que passa a mapear e construir um contradiscurso. "Gostei da iniciativa, mas a questão é a manutenção. O que vejo é que há espaço para crescer, porque, por outro lado, o bolsonarismo está enchendo o saco também internamente mesmo do campo evangélico", diz Ronaldo. A antropóloga Carly Machado, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, avalia como bem-vinda a organização e estruturação de um projeto feito por evangélicos do campo progressista. Desde 2010 a pesquisadora estuda a atuação de grupos pentecostais nas periferias do Rio. Diz que o crescimento de representantes evangélicos da centro-direita é resultado de anos de investimento, construção de redes, realização de eventos junto à população e organização nos bastidores. "O campo evangélico vem gradativamente se aproximando da política, mas não necessariamente é um campo que lida com a política do jeito que as pessoas imaginam, ou seja, uma política escancarada falando nos púlpitos durante os cultos", afirma. Ronaldo também diz que é preciso ter em mente que os parlamentares não podem ser empacotados apenas como evangélicos, pois eles também integram outros segmentos, como empresários, radialistas ou na segurança pública. Os dois especialistas avaliam que o observatório acerta ao buscar o diálogo pelo campo social. "Tem uma coisa de missão, incômodo e militância do que é ser cristão. Há uma disputa nesse sentido sobre o que se entende por cristianismo e sacaram que para discussão das pautas do tipo moral, que era uma pauta de esquerda que foi capturada pela direita, ficou um campo inseguro", diz o professor. Carly afirma que houve um esvaziamento dos campos de discussão sobre a vida econômica da população que fez com que igrejas com perspectiva neoliberal ocupassem esse espaço, mas que é preciso retomar a discussão sob outras bases. "É difícil a negociação sobre o direito ao aborto, mas você pode disputar com novas pautas e ninguém sabe melhor o que a Bíblia tem a apresentar do que os próprios evangélicos, pastores e teólogos", diz.
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