Matheus Pichonelli
Depois de quatro dias internado, Jair Bolsonaro recebeu numa bandeja um falso dilema a respeito do fundo eleitoral, aprovado com ajuda de sua base parlamentar no valor exorbitante de quase R$ 6 bilhões —o triplo do que os candidatos a prefeitos e vereadores receberam em 2020. Diante da proposta indecorosa e impopular, o presidente poderia vetar o projeto e bater no peito para a torcida ou simplesmente sancioná-lo e dizer que não poderia desrespeitar a vontade do Parlamento e blá-blá-blá. Não seria nem a primeira vez que ele abre a carteira em troca de apoio. Um velho ditado das velhas raposas que habitam qualquer capital do Planeta ensina que filho feio não tem pais. Bolsonaro viu a careta do fundo embalado pelo Congresso e chamou Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara, para o teste de DNA em público, como se estivesse no auditório do Ratinho. Tudo isso sabendo que o projeto era endossado por sua tropa de choque, puxada por Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro, ambos do PSL de São Paulo. Ramos, que presidiu a sessão em que a encrenca foi aprovada, entendeu a estratégia. Bolsonaro apontava as digitais para ele com uma mão enquanto idealizava um meio termo ao custo de R$ 4 bilhões aos cofres públicos. Quis fazer gol de canela e chamar de bicicleta. Ramos não deixou barato. Em entrevistas, o deputado disse que Bolsonaro é um risco à democracia e anunciou que, a partir de agora, é oposição ao governo. Mesmo sendo de um partido que comanda a Secretaria de Governo e que, em tese, integraria a base do centrão: o PL de Valdemar Costa Neto. O anúncio chega a lembrar a contenda entre Dilma Rousseff e Eduardo Cunha (MDB-RJ) em 2015. Com a diferença de que Cunha era o presidente de fato da Câmara, e não um interino com as chaves do impeachment. Em suas redes, Ramos vestiu até as meias do figurino da oposição. A foto de capa é o slogan das manifestações de rua contra Bolsonaro que pedem “vacina no braço, comida no prato”. No Twitter, o deputado desafiou o presidente a vetar, sem fanfarronice (palavras dele), o fundo eleitoral na íntegra, e não sem bode na sala (palavras minhas). Tudo isso enquanto postava ter recebido uma cópia do superpedido de impeachment contra o presidente das mãos dos próprios autores. “São 21 imputações de crime de responsabilidade e algumas delas, numa primeira leitura, parecem bem consistentes.” A armadilha, com ampla repercussão, mostrou que a esperteza de Bolsonaro só vai até a segunda página. Se valesse um livro, ele não vagaria sem partido, feito alma penada, a um ano e três meses da eleição. Especula-se que Ramos não fale por si, mas pelo líder de sua legenda que viu na crise, criada pelo próprio presidente, mais uma oportunidade. Bolsonaro pode agora tirar o bode da sala que quiser. Mas, ao jogar aos leões um possível aliado, não sairá tão fácil da crise. Com uma perna do centrão mordida, a outra precisará trabalhar mais. Coincidência ou não, já começa a surgir a conversa de que o PP, que já tem o comando da Câmara, pode agora ganhar agora a Casa Civil. Sinais de que o apoio a um governo hábil apenas em criar encrencas desnecessárias dobrou de preço. Na cotação do dia, a solução dos R$ 4 bilhões, exposta nesses termos por Marcelo Ramos, periga deixar Bolsonaro sem moral nem com os eleitores, indignados (com razão) com o fundo marombado, nem com a base parlamentar capaz de segurar o impeachment. Um feito e tanto mesmo para os padrões bolsonaristas de gestão da crise. Na mão do presidente, os limões do fundo eleitoral viraram suco de pedregulho.
Matheus Pichonelli é formado em jornalismo pela Cásper Líbero e em ciências sociais pela USP. Cobri minha primeira eleição em 2006, pela Folha de S.Paulo, e desde então tenho tentado entender (e compartilhar) o impacto das decisões políticas em nossas vidas cotidianas. Pelo Yahoo, acompanhei as eleições de 2014 e 2018. Tenho passagens também pelo portal iG, CartaCapital e UOL, onde mantenho uma coluna sobre comportamento, além de colaborações para veículos como The Intercept Brasil e o jornal O Globo.