Domingo, 10 de
Novembro de 2024
Brasil

Perigo

Com gasolina cara, brasileiros se arriscam com gás de cozinha em carro

A conversão clandestina de veículos para GLP era uma prática comum no Brasil dos anos 1980,

Foto: Divulgação
post
Explosão provocada por conversão clandestina de veículo para GLP em Natal, no Rio Grande do Norte (12/07/2020)

25 setembro, 2021

Os brasileiros viram voltar em 2021 o que não queriam que voltasse, como a fome, a inflação, o fogareiro a lenha e o sequestro relâmpago. Agora, mais um item pode ser acrescentado a essa lista: a conversão clandestina de veículos para GLP (gás liquefeito de petróleo), mais conhecido como gás de cozinha ou gás de botijão.  Na plataforma de comércio eletrônico Mercado Livre, o kit para conversão de automóveis para GLP é vendido por valores que variam de cerca de R$ 500 a R$ 1 mil, com a promessa do vendedor de uma economia de "30% na cidade e 50% na estrada".  A economia prometida não é verdadeira, segundo cálculo feito por professor de finanças da FGV (Fundação Getulio Vargas) e da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) a pedido da BBC News Brasil. E a prática ilegal expõe motorista e passageiros a risco elevado de explosão.  Na Câmara dos Deputados, um projeto de lei (PL 4217/19) que autoriza o uso do gás de cozinha em motores diversos, incluindo o de veículos, foi aprovado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) em agosto e está pronto para ir à votação em Plenário.   O projeto divide opiniões no setor de gás. Representantes do segmento de GNV (gás natural veicular) -  combustível que é diferente do GLP e pode ser usado em automóveis legalmente  - são contrários à aprovação. Eles argumentam que ela pode estimular a conversão clandestina e, com o aumento de demanda, encarecer o gás de cozinha para as famílias, já que entre 27% e 30% do GLP consumido no Brasil é atualmente importado.  Em agosto, o preço médio do botijão de gás de 13 kg estava em R$ 93, segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), mas já superava os R$ 100 em diversos Estados brasileiros, como Mato Grosso (R$ 114), Rondônia (R$ 111), Amapá (R$ 109), Roraima (R$ 109) e Pará (R$ 102).  Os representante dos distribuidores de GLP, por sua vez, acusam o setor de GNV de querer manter reserva de mercado e defendem a liberdade de escolha dos consumidores, lembrando que o combustível é utilizado em automóveis na Europa.  Procurado, o Mercado Livre disse que a venda de kits de GLP na plataforma é proibida e que, assim que identificados, os anúncios com esse teor são derrubados e o vendedor, notificado. Após a resposta da empresa à BBC News Brasil, diversos anúncios foram apagados.  

'Serve para carro Uno, ano 92, carburado?' 

O anúncio diz que é de "Kit Gás GLP Botijão P13 para Empilhadeiras Barcos Geradores", mas as dúvidas dos compradores e respostas do vendedor não deixam dúvidas: o principal uso pretendido por quem compra um desses kits é a conversão clandestina de automóveis.   "Bom dia, serve [para] carro uno ano 92 carburado?", pergunta um comprador. "Olá, serve sim", recebe de resposta.  "Kit para Saveiro injetada", pede outro cliente. "Qual ano e motor? Monoponto ou 4 bicos? Especifique", responde o vendedor.  "Boa tarde. Esse kit consigo instalar em um Chevette 1.6 a gasolina? Desde já agradeço", questiona um terceiro. "Consegue sim", é a resposta.  Para quem pergunta a economia obtida com a conversão, a resposta é sempre a mesma: "Economia em R$ [reais], 30% cidade e 50% estrada, essa é a média", promete o vendedor.   Além do kit supostamente para empilhadeiras - único veículo no qual o uso de GLP é autorizado -, muitos outros anúncios trazem explicitamente o modelo de veículo a que o produto se destina: "Kit Gás GLP Botijão P13 Vectra Ano 98 Motor 2.2 8v", "Kit Gás GLP Botijão P13 Doblo 1.3 16v 2005 Gasolina", "Kit Gás GLP Botijão P13 Meriva 1.4 Flex", eram alguns dos exemplos disponíveis na quinta-feira (23/9). 

Inflação e proibição 

A busca por economia no combustível é justificada: segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a gasolina acumula alta de 31% no ano, até agosto, e de 39% em 12 meses. Já o etanol subiu 41% entre janeiro e agosto e 62% no acumulado de 12 meses.  No entanto, a conversão para GLP é ilegal. A Lei 8.176 de 1991 define como crime contra a ordem econômica o uso do "gás liquefeito de petróleo em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas, ou para fins automotivos".  A resolução 673 do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) diz que utilizar gás de cozinha em automóveis é uma infração grave. O motorista flagrado perde cinco pontos na carteira, pode ser multado em R$ 195,23 e ter o veículo apreendido.  A infração também está descrita no artigo 230 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e em normativa da ANP (Resolução ANP nº 49 de 2016). A conversão clandestina de veículos para GLP era uma prática comum no Brasil dos anos 1980, particularmente nas periferias, mesmo sendo proibida pelo Contran desde 1986. Já a definição do uso como "crime contra a ordem econômica" aconteceu em 1991, em meio à Guerra do Golfo, uma das principais regiões produtoras de petróleo do mundo — o GLP é um derivado do óleo. Mesmo após a proibição, a prática continuou nos anos 1990. Uma reportagem da Folha de S. Paulo de 1998, por exemplo, relatava que cerca de 25 mil veículos rodavam movidos a gás de cozinha na região de Irecê, no interior da Bahia.  "Os proprietários dos veículos argumentam que o gás de cozinha é mais econômico. Com um botijão de gás (13 kg), o proprietário de um veículo pode rodar até 170 km", dizia a reportagem. "O botijão de gás custa R$ 9 nos postos de Irecê." 

Botijão de gás a R$ 9. Realmente, eram outros tempos 

Conversão clandestina de veículos para GLP era prática comum no Brasil dos anos 1980, particularmente nas periferias, mesmo sendo proibida pelo Contran desde 1986.

Economia de 30%? Longe disso! 

E atualmente, compensa fazer a conversão clandestina com o botijão acima dos R$ 90?  O professor Fabio Gallo Garcia, da FGV e da PUC-SP, é taxativo: não compensa, nem do ponto de vista econômico, nem no da segurança de motoristas e passageiros.  A pedido da BBC News Brasil, o especialista em finanças estimou o custo por quilômetro rodado dos diversos tipos de combustíveis, considerando um preço médio de R$ 6,076 por litro para a gasolina, R$ 4,704 por litro para o etanol, R$ 4,146 por metro cúbico para o GNV e R$ 16,12 por metro cúbico para o GLP (equivalente a R$ 98,33 por botijão de 13 kg).  Pelas contas do professor, considerando apenas o preço dos combustíveis, o GNV -que é usado legalmente nos veículos - gera uma economia por quilômetro rodado de 51% em relação à gasolina e de 56% em relação ao etanol. Já no GLP - de uso clandestino -, a economia é de apenas 4,4% em relação à gasolina e 13,5% na comparação com o etanol.  Ou seja: nem de longe a economia chega nos 30% ou 50% prometidos pelo vendedor de kits do Mercado Livre.