Quinta-feira, 14 de
Novembro de 2024
Brasil

Novo normal

Botijão a R$ 100, crise e desemprego trazem de volta o fogão a lenha

É a volta de uma realidade que parecia esquecida, mas que vem se tornando mais uma faceta do novo normal para a população mais vulnerável

Foto: Gustavo Basso/Yahoo Notícias
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Uma churrasqueira velha se tornou o fogão improvisado de Dulce Januário. Desempregada e sem renda, há quatro meses ela recorre exclusivamente às madeiras que recolhe e acumula em uma caixa d’água para poder cozinhar

15 outubro, 2021

Osasco (SP) - Desempregada há sete meses, a diarista Dulce Januário se emociona ao relembrar a rotina diária de sair pelas vielas da ocupação irregular onde vive, em Osasco, na Grande São Paulo, atrás de restos de madeira para abastecer a pequena churrasqueira instalada no pátio da casa de madeira e que faz as vezes de fogão, ainda que sujeito às variações do clima. “Quando chove o jeito é colocar um guarda-chuva aqui apoiado no portão e nesse telhadinho e continuar; o pior é que madeira úmida faz muita fumaça, irrita demais os olhos, nariz, etc. Na favela já me chamam de ‘mulher do pau’; sempre que estão desmanchando um barraco, já mandam chamar a mulher do pau pra pegar os restos de madeira”. Sem dinheiro para bancar o aluguel, Dulce acabou alojada em uma ocupação irregular na Grande SP, em um casebre de madeira feito por ela mesma. Faz quatro meses que ela não sabe o que cozinhar no fogão, usando gás, que onde mora pode custar até R$ 120. Os mais de 80% de aumento no preço do botijão de 13 kg nos últimos 12 meses, somados aos mais de 14 milhões de desempregados resultaram em um aumento expressivo no uso de lenha e similares como combustível para o preparo de alimentos dos brasileiros. É a volta de uma realidade que parecia esquecida, mas que vem se tornando mais uma faceta do novo normal para a população mais vulnerável. Uma churrasqueira velha se tornou o fogão improvisado de Dulce Januário.  A pandemia e a crise decorrente dela aceleraram esta troca, mas trata-se de um processo que já vinha se arrastando desde 2016, quando a Petrobras mudou sua política de preços em uma das primeiras medidas do governo de Michel Temer. Desde então os preços internos dos combustíveis no Brasil seguem as flutuações externas, o que pesou no bolso dos consumidores mais pobres. Afetado por cortes de verbas já na presidência de Jair Bolsonaro, o IBGE não divulga dados sobre o uso de lenha e carvão como combustível nas cozinhas desde 2019, mas já naquele ano os dados impressionavam: O número de domicílios que usava carvão ou lenha para cozinhar cresceu 27% entre 2016 e 2019, saltando para 14 milhões de lares. No Sudeste, onde historicamente o uso de lenha é mais raro, o aumento foi ainda maior: mais de 60%. Do total de domicílios do país, 21,8% usavam esse tipo de energia – ou seja, um em cada cinco domicílios do país. A realidade é ainda mais cruel quando os alimentos acumulam alta de 14,66% em 12 meses, segundo o IBGE, com destaque para itens básicos como açúcar (44%), óleo de soja (32%) e carnes (25%). Muitas pessoas se veem tendo que optar entre o gás e o alimento. “Na semana passada mesmo eu fui atrás do dinheiro do gás, mas infelizmente quando o dinheiro chegou, faltava arroz, faltava feijão, faltava mistura e aí eu não tinha como deixar meu filho sem comer pra comprar o gás, aí eu tive que fazer o quê? Optar pela alimentação”, lamenta Marinalva Silva, moradora de Cajamar, também na Grande SP. Marinalva Silva tentou usar o fogão de lenha, mas a fumaça agravou a asma do filho de 10 anos, que precisou ser internado; a solução encontrada por ela foi o uso de fogareiro e panela elétricos, só possíveis pois a luz não é regularizada:  Ela questiona o valor do auxílio emergencial em comparação com o preço que paga atualmente no botijão: ”O que é que você vai fazer com R$ 150 se o seu gás custa R$ 120? Com 30 reais você vai ter que comprar um pezinho de frango se quiser comer uma misturinha; aí o cara vai me trazer o botijão, e eu vou ficar olhando pro botijão e pro fogão pensando o que eu vou por lá pra cozinhar?” Ao contrário do fogão, a lenha desprende fumaça que acaba atacando as vias respiratórias - mais um cruel agravante em meio à pandemia do coronavírus, que ataca mais diretamente pulmões e vias aéreas. “Madeira em si já é nociva de se respirar, mas essas tábuas de construção que usamos são tratadas com produtos químicos que são ainda mais agressivos, e vamos respirando isso”, destaca o técnico de informática Christian Willy enquanto prepara o almoço da família em um dia quente à beira do fogo. “Tô com uma crise alérgica de tosse que qualquer fumacinha já… e cozinhar na lenha parece que só agrava isso. Ainda bem que tá calor, porque se estivesse frio não ia nem conseguir falar, só tossia”, conta, aliviado com o tempo seco que acaba provocando menos fumaça. Willy é um entre milhões de brasileiros que se viu obrigado a adotar como rotina um ritual que para muitos é considerado um prazer em família: “Tem gente que romantiza o fogão a lenha. Eu acredito que se for pra cozinhar de vez em quando na lenha, em ocasião especial, é uma coisa, mas só ter a opção de cozinhar a lenha, não é romantismo, é necessidade, e romantizar a pobreza não é muito legal”, conclui Willy, que desde o dia 7 de outubro teme perder algo maior que o gás. A Justiça de São Paulo, naquele dia, determinou para dezembro uma ação de reintegração de posse da ocupação onde mora, ameaçando deixar cerca de cem famílias sem teto, sem gás e sem fogão a lenha.