Os três artistas (o músico Paulo César Santos, do grupo Roupa Nova, tinha 68 anos, o ator Eduardo Galvão, 58 e o humorista Paulo Gustavo, 42) foram algumas das vítimas mais conhecidas da Covid-19 em um país onde a expectativa média de vida é de 76,6 anos. Eles se somam a quase 600 mil pessoas mortas pela doença no Brasil. Para o presidente Jair Bolsonaro, porém, muitas dessas vítimas “tinham alguma comorbidade, então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas”. Os exemplos acima, de pessoas que estavam em plena atividade até serem infectadas, deveriam causar ao menos rubor em quem profere uma bobagem do tipo. Mas Bolsonaro já mostrou não ser o tipo que sente remorso. De duas, uma. Ou o presidente não conhece a realidade do país que quer governar, o que é péssimo, ou ele conhece e quer te enrolar - o que é pior. Em 2020, primeiro ano da pandemia, o Brasil teve 22% a mais de mortes por causas naturais do que o apurado desde 2015, segundo o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Mortes por causas naturais não incluem, por exemplo, os óbitos por acidentes ou armas de fogo, por exemplo. Pela média dos últimos anos, era esperado que 1.231.020 pessoas morressem por causas naturais no país. Mas a este número somaram-se 275.587 óbitos a mais - aparentemente, o incremento não foi puxado pelo índice de pessoas que morreram engasgadas com o soluço do próprio almoço. Naquele ano, a covid tirou a vida de quase 200 mil brasileiros. O estudo do Conass mostra que os estragos foram ainda maiores, já que a sobrecarga dos serviços de saúde levou à interrupção de tratamento de outras doenças crônicas. Entre pessoas com mais de 59 anos, o aumento de mortes esperadas foi de 31%. Vai ver foi só coincidência a chegada da pandemia, minimizada pelo presidente do primeiro ao último instante. Em depoimento a um documentário produzido por um grupo de extrema-direita alemão (vai ter brecha na agenda assim lá na Vivendas da Barra), Bolsonaro fez crer que todas essas vítimas já estavam na hora da morte. Pela lógica, a covid apenas encurtou o sofrimento —fora do cercadinho da zona de conforto, duvido que alguém tivesse a coragem de falar isso para familiares de alguém que tinha disposição e outros planos para a vida a não ser morrer dali algumas semanas. Na entrevista, Bolsonaro afirmou que uma pessoa na UTI por covid “custa” R$ 2 mil por dia e com outras doenças, apenas R$ 1 mil. Eis o raciocínio: “então quando uma pessoa mais humilde vai no hospital ela é levada para a UTI porque os hospitais vão ganhar mais dinheiro. Então tem essa supernotificação”. Sabe aqueles integrantes das equipes de saúde que ficaram longe de suas famílias, correram riscos, se destroçaram à beira do colapso na linha de frente da pandemia? Pois é. O presidente acha que eles só fizeram tudo isso para ganhar dinheiro em cima de pessoas humildes. Deve haver uma doença mesmo muito grave no país onde o líder da nação cospe na cara da população e de seus médios e ainda é chamado de “mito” em manifestações patrióticas. Isso porque a rede mais bolsonarista dos planos de saúde faziam exatamente o oposto do que seu líder acusa: tiravam a referência à covid dos prontuários. Não bastasse a fala no documentário, Bolsonaro usou sua live de quinta-feira 23 para espalhar um monte de mentiras e ainda mais confusão sobre a eficácia da vacina, a única ferramenta que conseguiu diminuir o ritmo das mortes no país. A fala se deu por conta da situação de seu ministro da Saúde, infectado mesmo tendo tomado duas doses da CoronaVac e usado máscara o tempo todo da viagem a Nova York. O apego de Bolsonaro à ironia da vida é só mais um tapa na cara de toda a comunidade científica disposta a explicar pacientemente para a população que vacina não é garantia de não-contaminação, mas sim o melhor sistema de defesa contra a evolução da doença. Ela não faz milagre em pacientes que circulam e têm contato com pessoas infectadas. Esse risco só diminui conforme a maior parte da população esteja imunizada. Isso já deveria estar decorado na cartilha de quem há mais de um ano e meio convive com uma doença que já ceifou quase 600 mil vidas. Bolsonaro aparentemente cansou de atribuir a responsabilidade a prefeitos e governadores e agora quer te convencer que seu vô, sua vó e seus pais só morreram asfixiados na fila do hospital para ajudar o Criador a encurtar alguns dias o cronograma de suas vidas. Na versão bolsonarista, o vírus foi quase um favor.
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